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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

terça-feira, dezembro 06, 2011

O outono de João Havelange, o homem que negociou o futebol

Por: Fernando Vives/Carta Capital
 
Qualquer pessoa que acompanhou com certo afinco o mundo do futebol nos últimos 40 anos guarda na memória alguma lembrança acinzentada de João Havelange. Acinzentada por seu olhar de um azul irremediavelmente monótono, ou por sua voz cimentada a soltar as palavras como se as cordas vocais fossem uma linha de produção de sílabas robotizadas.
João Havelange transformou o principal esporte da humanidade, mas não necessariamente para melhor. E o homem que mudou o futebol começa a ver sua reputação ruir aos 95 anos de idade.
Neste domingo 4, o belgo-brasileiro que dirigiu a Fifa por 24 anos e desde 1963 era integrante do Comitê Olímpico Internacional (COI) renunciou ao seu posto neste último. Caso não largasse o osso, a investigação interna pela qual vinha sendo devassado certamente culminaria na recomendação para que fosse expulso dos quadros da entidade.
Havelange é acusado de receber propina da empresa de marketing suíça que negociava os direitos de grandes transmissões esportivas até 2001, copa do mundo de futebol inclusa, quando faliu. Segundo denúncia do jornalista britânico Andrew Jennings, da BBC, Havelange recebeu até 6 milhões de libras para liberar os direitos à ISL. A denúncia dos britânicos mostra que um tribunal suíço confirmou a propina e obrigou Havelange a devolver o dinheiro. E é importante frisar aqui: Ricardo Teixeira, manda-chuva do futebol brasileiro e do Comitê Organizador Local (COL), do Mundial 2014, também é acusado de receber a propina da ISL.
A acusação e a consequente queda de Havelange mancha, enfim, uma polêmica carreira que definiu os rumos do futebol mundial e inspirou o COI a fazer o mesmo com as modalidades olímpicas. Competiu como nadador nas Olimpíadas de 1936, na Berlim de Hitler, e como jogador de polo aquático nos Jogos de Helsinque, em 1952. Na sequência, a partir de 1956, o belgo-brasileiro tornou-se presidente da Confederação Brasileiro do Desporto (CBD), entidade que respondia por todos as modalidades olímpicas no Brasil.
Mas o golpe de mestre do dirigente veio em 1974, nas eleições para a presidência da Fifa, às vésperas da Copa da Alemanha Ocidental. Havelange seria o desafiante de Stanley Rous, até então lendário presidente da entidade. Rous era um ferrenho defensor do esporte, mas tinha o defeito típico dos europeus, especialmente os de antigamente: eurocêntrico, ligava pouco para o futebol praticado nos países periféricos, nem se interessava muito em com eles dialogar. Havelange percebeu a deixa e convenceu rapidamente membros das federações menores, como as africanas, e conseguiu golpear Rous.
Se Havelange tem um ponto positivo em sua trajetória, esta é a de levar o futebol para os países pobres. Mas sua mentalidade de que o esporte é, acima de tudo, negócio também levou a Fifa a fazer amizades com ditadores sanguinolentos, que usavam o futebol para a promoção de seus respectivos regimes. A modalidade poderia servir a quem quisesse, desde que os negócios fossem proveitosos para a Fifa.
Foi na gestão dele que o esporte bretão se transformou em uma mina de dinheiro. O futebol como um produto para o lucro fez da Fifa uma entidade internacional desorganizada, nas mãos de poucos e nebulosa, que não presta contas a praticamente ninguém. Tão nebulosa que permitiu ao seu hoje ex-presidente demorar mais de uma década para ser punido por um crime que, segundo a imprensa do Reino Unido, cometeu. Aos 95 anos de idade, João Havelange tem, enfim, a mancha que faltava em seu currículo. 
*Ocarcará

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