Condenação política e sem provas pode abrir precedente perigoso
Juristas, cientistas
políticos e especialistas temem que lógica subjetiva do julgamento,
inaugurada ontem pelos relator Joaquim Barbosa, seja seguida por demais
ministros do STF
Por: Maurício Thuswohl, no Rede Brasil Atual
Ao
dar início ontem (17) no Supremo Tribunal Federal (STF) à sua análise e
voto sobre o item do julgamento do mensalão que trata do repasse do
dinheiro proveniente das empresas de Marcos Valério aos partidos da base
aliada, o relator do processo, ministro Joaquim Barbosa, confirmou uma
linha de raciocínio que aponta para a condenação da maioria dos réus
mesmo sem a existência, em alguns casos, de provas materiais. A opção
por uma abordagem com fortes tintas políticas é motivo de críticas entre
juristas e cientistas políticos e já provoca a reação dos advogados dos
réus. Além disso, abre na Justiça brasileira um precedente que, na
opinião de alguns especialistas, pode ser perigoso.
A
subjetividade que marca o voto de Barbosa ficou evidente quando o
ministro, ao analisar o repasse de R$ 4,1 milhões ao PP, afirmou, mesmo
sem a existência de nenhuma prova concreta nos autos do processo, que
este aconteceu com o intuito de “comprar” os parlamentares do partido
para que votassem a favor das reformas tributária e previdenciária
propostas pelo governo Lula: “Não há qualquer dúvida quanto à existência do esquema de compra de votos a esta altura do julgamento”, disse.
Segundo
Barbosa, a “compra” se caracteriza porque existe coincidência de datas
entre as votações das duas reformas e o repasse feito ao PP: “Essas
reformas receberam o fundamental apoio dos parlamentares comprados pelo
PT e das bancadas por eles dirigidas, exatamente no mesmo momento em que
foram realizados os maiores repasses de dinheiro aos acusados”,
disse, sem mencionar o fato de que mesmo o número total de parlamentares
do PP era insuficiente para garantir a aprovação das reformas.
Sobre o assunto, o senador Roberto Requião postou hoje (18) em sua conta no Twitter o seguinte comentário. “Que
vantagem poderia ter o PT como partido e alguns petistas como pessoas,
comprando apoio para a reforma tributária e da previdência?”. O
relator Barbosa não responde nem a essa nem a outras questões, como, por
exemplo, o fato de as duas reformas terem sido aprovadas por ampla
maioria no Congresso Nacional, inclusive com os votos do PSDB e do então
PFL (atual DEM), opositores sistemáticos do governo petista.
Como
suposta evidência da relação criminosa entre os dois partidos, o voto
do relator se apoiou ainda em outra constatação - a “incompatibilidade
ideológica” entre o PP e o PT - que não pode ser comprovada de forma
objetiva. Para Barbosa, é impensável que os dois partidos possam ter
feito de fato um acordo político: “Até meados de 2003, o PP fazia
oposição ao governo, ao lado de PFL, PSDB e Prona. Não existe qualquer
outro motivo, que não seja a compra de votos, para que o PT decidisse
apoiar o PP financeiramente naquele momento. Os dois partidos eram
opositores até no campo ideológico, se é que no Brasil existe isso”, disse
o relator, em uma declaração com teor político pouco usual na história
do STF. Aqui, Barbosa faz uma leitura rasa da política, desconsiderando
que a composição de forças é algo absolutamente normal num sistema
democrático.
Durante o voto, Barbosa fez ainda
diversas observações que indicam sua intenção de pedir também a
condenação do chamado “núcleo político” do mensalão, integrado pelos
petistas José Dirceu, José Genoino e Delúbio Soares. Este último chegou a
ser diretamente citado pelo relator: “Os acusados procederam à
distribuição de dinheiro em espécie a parlamentares indicados a Marcos
Valério pelo então tesoureiro do PT, Delúbio Soares”, disse.
Domínio do Fato
Se
confirmada a condenação do “núcleo político” sem provas, o STF estará
criando uma inédita jurisprudência. Para tanto, na análise de crimes
como corrupção (ativa e passiva) e formação de quadrilha, os ministros
se apoiam em interpretações peculiares de conceitos jurídicos como
“domínio do fato” e “ato de ofício”.
Criado na
Alemanha para julgar comandantes militares nazistas, a teoria do
“domínio do fato” consiste em afirmar que superiores hierárquicos têm
conhecimento - e dão aprovação tácita - sobre os crimes cometidos por
seus subordinados, podendo ser também condenados por esses crimes.
Segundo o raciocínio já manifestado pelo relator, sua aplicação
embasaria a condenação de Dirceu e dos demais dirigentes petistas. A
lógica é a mesma usada pelo procurador-geral da República, Roberto
Gurgel, em sua peça de acusação. Ocorre, no entanto, que não existia
relação de subordinação entre Dirceu, Genoino e Delúbio na época. Os
dois primeiros eram dirigentes da Executiva Nacional do partido, que é
uma instância colegiada - Genoino como presidente; Delúbio como
secretário de Finanças. E Dirceu tinha se afastado da direção partidária
para chefiar a Casa Civil no início dos governo Lula. Nenhum dos três
tinha qualquer função ou poder de mando sobre os demais réus do
processo.
Durante o julgamento do mensalão,
alusões ao “domínio do fato” já foram feitas em plenário pelos ministros
Rosa Weber, Celso de Mello e Cezar Peluso (já aposentado). Único a
falar abertamente sobre o tema à imprensa, o ministro Marco Aurélio
Mello analisou a situação de Dirceu: “É preciso um elemento concreto
que revele a participação ou integração do réu à quadrilha ou se de
fato cometeu corrupção ativa”, disse, acrescentando que somente
provas testemunhais, como a do ex-deputado Roberto Jefferson, não são
suficientes para a condenação: “Tem que somar esse elemento a outros para concluir pela culpabilidade ou não”, disse.
Outro
conceito, utilizado na análise dos crimes de corrupção, é a existência
do “ato de ofício”, que é a retribuição pelo corruptor passivo à
vantagem recebida indevidamente. No caso da suposta compra de votos de
parlamentares do PP ou dos demais partidos da base aliada, o “ato de
ofício” não é comprovado objetivamente, mas isso também não é levado em
conta pelo ministro relator: “Não é necessário provar que o agente
público que recebeu dinheiro do esquema fez algo em troca para merecer.
Só o fato de terem recebido dinheiro já basta”, disse Barbosa.
Embargos
A
probabilidade de condenação de diversos réus do processo do mensalão
com base em conceitos subjetivos ou em argumentações de natureza
política já provoca intensa movimentação entre seus advogados. Embora
não falem sobre isso à imprensa - o que poderia ser contraproducente
neste momento do julgamento - alguns embargos já estariam até mesmo
redigidos e prontos para serem apresentados: “Os advogados sabem que
essa condenação, se confirmada, irá de encontro a tudo o que se fez nos
últimos anos na Justiça brasileira e, em particular, no STF”, diz um integrante da direção do PT.
Em entrevista à revista Carta Capital, o cientista político Wanderley Guilherme dos Santos critica a abordagem do STF no julgamento do mensalão: “Não
sei se José Dirceu é inocente ou se, como outros, cometeu algum crime à
sombra do ilícito caixa dois. Mas, se for condenado sem provas, será um
julgamento de exceção”, diz. Sobre a teoria do “domínio do fato”,
Santos afirma que, nesse caso, seria “a espinha dorsal” para uma
condenação sem provas: “Para tanto, o procurador insinuou e o
relator apresenta repetidamente, em paralelo aos autos, um enredo
perverso ligando todos os ilícitos, como se fossem uma mesma coisa, cujo
autor sem assinatura seria José Dirceu”, diz.
Um ex-ministro de Lula afirma que o julgamento abre um precedente que precisará ser respeitado daqui pra frente: “Vem
aí o julgamento do Daniel Dantas. Vamos ver como ficará o STF se não
aplicar também o conceito do 'domínio do fato', entre outros agora
aplicados. Isso vale também para as outras instâncias, no julgamento do
mensalão do PSDB e sua relação com o ex-governador tucano Eduardo
Azeredo”.
*OCarcará
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