Se estivéssemos em um país que não teme seu passado...
do Diário Guache
Cristóvão Feil
O choque e a ironia
"A
cada fisgada elétrica vai-se tecendo a argumentação virulenta cuja
eficácia faz desabar as ilusões que ainda nutríamos sobre a realidade da
vida nacional."
Desta forma, Luiz Roberto
Salinas Fortes [foto acima], professor de filosofia da Universidade de
São Paulo, nos descreve a verdadeira dor provocada pela tortura em um
pau-de-arara. A dor de descobrir que "o abismo, na realidade, é imenso
entre a literatura e o choque, entre o argumento e a porrada".
Isso
talvez nos explique porque boa parte daqueles que descobrem a
vulnerabilidade nua da tortura só suportem o silêncio. Porque um choque
elétrico em um pau-de-arara não se escreve. A escrita ainda pressupõe
alguma demanda de partilha, mas um choque não se partilha. Ele apenas
faz tudo desabar, a começar pela ilusão de que os conflitos da vida
nacional possam se resolver em alguma forma de diálogo socrático.
Aí
está talvez a grandeza de "Retrato Calado", livro reeditado agora, no
qual Salinas Fortes descreve suas prisões e torturas na ditadura militar
e, assim, elabora o mais profundo dos traumas, este que nos leva à
"cena primitiva": o trauma de descobrir um país sem argumentos. País que
periodicamente entra na via larga da porrada e sai sempre com as mãos
ilesas.
Lá onde todos preferem se calar, Salinas
Fortes resolveu escrever. Uma escrita que, no entanto, não espera
"contar" o que não se conta.
Como se a crueza de
um relato em primeira pessoa pudesse fazer os choques serem sentidos
pelo leitor, obrigando-o a pensar de outra forma.
Alguém
como Salinas não tem mais essas ilusões. Por isso, ele usa a única
coisa que até hoje restou a esse país quando seus traumas se confrontam
com a fraqueza das palavras.
De maneira monstruosa.
Salinas usa a ironia melancólica para fornecer o melhor retrato que temos da brutalidade da ditadura militar.
Essa
estranha distância irônica diante de seu próprio destino amargo dá a
"Retrato Calado" a força dos que não querem ser empurrados para a vala
do ressentimento. Força própria àqueles que sabem que a inteligência é a
mais doce de todas as vinganças, e a única realmente permitida.
Se
estivéssemos em um país que não teme seu passado, "Retrato Calado"
seria adotado nas escolas de ensino médio, da mesma forma que os alemães
adotaram em suas escolas livros sobre os horrores do nazismo.
Nossos
estudantes aprenderiam não apenas a brutalidade do cárcere político,
mas a altivez da inteligência irônica que nunca se quebra. Única forma
de dizer o que não cessa de não se escrever.
Artigo do professor Vladimir Safatle, da Filosofia da USP.
*GilsonSampaio
Nenhum comentário:
Postar um comentário