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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

sábado, dezembro 13, 2014

Um dinheiro incontável é gasto para proteger os cidadãos dos 'perigos' da droga, como se não fosse mais fácil morrer de bala perdida que de overdose de maconha
por Maurício Moraes na Carta Capital

Para "proteger" nossas famílias dos vapores entorpecentes deste mundo,
criamos um sistema sórdido de violência
Você, leitor, já parou para pensar que o mundo trava hoje uma guerra perdida baseada em uma grande mentira? Que despejamos bilhões de dólares, de reais, de pesos, em uma guerra que só faz escorrer sangue em nossos morros, que faz alimentar milícias e guerrilhas, políticos e policiais corruptos?
O que dizer sobre o fato de que uma mentira ajuda a fazer do Brasil um dos países recordistas em homicídios no mundo ― 56 mil mortos em 2012? E que esse mesmo delírio faz entupir nossas prisões, sobretudo com jovens pretos e pobres, numa engrenagem que só gera mais violência?
Para entender a paranoia, voltemos a 1971. Naquele ano, o presidente dos Estados Unidos, Richard Nixon, declarou uma "Guerra às Drogas", dizendo que os entorpecentes eram o "inimigo número um do país". Acossado por notícias de uso de drogas por soldados americanos no Vietnã, em tempos em que jovens maconheiros e contestadores pediam paz e amor e o fim da guerra, a nova política de drogas foi inaugurada com estardalhaço.
Baseada na premissa de um "mundo livre das drogas", com o objetivo de erradicar o consumo e o tráfico, a política da Guerra às Drogas fez escola na Europa e nas Américas. Nos mais de 40 anos que se passaram desde o anúncio da linha dura dos Estados Unidos, Nixon renunciou no escândalo de Watergate, os americanos fecharam o cerco em suas cidades e jogaram sua máquina de guerra contra plantações de coca nos Andes. Também intervieram militarmente no Panamá com a desculpa do combate ao tráfico. Em nome de uma mentira.
Ainda assim, o consumo de drogas só cresceu e o tráfico internacional bateu recordes. O Rio de Janeiro viu a violência explodir nos seus morros. São Paulo viu sua segurança pública refém de uma rede criminosa comandada de dentro dos presídios. Plano Colômbia, massacres no México, brigas de gangues em cidades do mundo inteiro... O enredo é macabro.
Segundo o Relatório Mundial sobre Drogas da ONU, cerca de 5% da população mundial já consumiu ou consome algum entorpecente (e o crescimento é estável). Isso explica os lucros insanos do narcotráfico. O proibicionismo criou um monstro que hoje movimenta US$ 400 bilhões por ano.
É esse dinheiro que financia as AK-47 dos morros cariocas e os fuzis que mataram 43 estudantes no México. Caverões do Bope, a Rota na rua, o Amarildo que nunca mais voltou e o massacre da juventude negra nas periferias são parte e consequência dessa guerra infame.
Tanto dinheiro e tanto empenho para supostamente proteger os cidadãos dos "perigos" da droga, como se não fosse mais fácil morrer de bala perdida do que de overdose de maconha. Para os defensores do proibicionismo, cabe ao Estado tutelar a vida (e logo as vontades) de seus cidadãos. Pode até soar altruísmo. Não é.
Desde que o mundo é mundo, as pessoas se entorpecem. Não me lembro de qualquer sociedade que não tenha desenvolvido algum tipo de bebida alcoólica (cachaça também é droga, vale lembrar, só que lícita). Fuma-se, cheira-se, faz-se de um tudo. A questão aqui não é dizer que droga é do bem ou é do mal, nem sustentar que não haja malefícios (sabe-se que maconha em excesso lesa um cidadão, que a cocaína frita neurônios, que álcool arruína os rins, etc…).
A questão é que a droga existe, que todo dia alguém fuma uma pedra no centro de São Paulo ou cheira uma carreirinha em algum canto do Congresso Nacional. É um fato e precisamos lidar com isso. Por isso mesmo, qualquer política pública que não aceite a realidade estará, em algum momento, equivocada.
Felizmente, temos sopros de lucidez ao redor do mundo. Estados americanos como o Colorado e o vizinho Uruguai já legalizaram a maconha (parte importante do problema). O debate ganha fôlego na América Latina e até nos EUA, onde o presidente Barack Obama já admitiu que a Guerra às Drogas é um "fracasso total”.
Nessa guerra travada sobretudo nas periferias, o maior preço é pago por quem é tragado pelas prisões superlotadas. No Brasil, a coisa só piorou desde que o Sistema Nacional de Politicas sobre Drogas entrou em vigor em 2006. Acabamos de passar a Rússia e agora temos a terceira maior população carcerária do mundo (715 mil pessoas).
Nessa guerra, cor da pele, endereço e conta bancária contam. Uma coisa é um menino branco fumar na Avenida Paulista (vai provavelmente se safar como usuário). Outra é o menino preto fumando na periferia (grande chance de ir para a cadeia por tráfico). O enredo é corriqueiro — curso intensivo de marginalidade e estigma após sair da prisão. O saldo é sempre mais violência.
Além de tragar recursos públicos, a Guerra às Drogas funciona como um terrível mecanismo de controle social, de criminalização da pobreza. Para "proteger" nossas famílias dos vapores entorpecentes deste mundo, criamos um sistema sórdido de violência. O Estado faz de conta que vai acabar com as drogas. A sociedade finge que a cadeia é a solução para todos os males (enquanto uns poucos tantos enriquecem nesse ínterim).
Diante da mentira, a verdade é que precisamos falar sobre drogas e debater sua legalização e regulação. Até lá, seguiremos contando os mortos desse front.
*Maurício Moraes é jornalista e foi candidato a Deputado Federal por São Paulo pelo PT.

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