Palha não entra: o seleto (e secreto) clube dos cannabiers ou maconheliers
Toda vez que perguntam ao presidente do Uruguai, Pepe Mujica, o porquê de sua defesa da legalização da maconha, ele dá duas razões principais: o combate à violência resultante do narcotráfico e a necessidade de garantir ao usuário segurança sobre a erva que irá fumar. No Brasil, a realidade dos fumadores de maconha é se submeter ao risco de adquirir o produto das mãos de um traficante sem saber exatamente o que está comprando ou… burlar a lei e plantar alguns pés de maconha em casa para consumo próprio.
Embora proibido, o autocultivo tem não só encontrado cada vez mais adeptos entre nós como começam a surgir verdadeiros connoisseurs da planta, capazes de identificar a qualidade ou não de um baseado apenas pela aparência da erva. Depois dos baristas (especialistas em café), sommeliers (vinho ou cerveja) e chocolatiers, eis que surgem os cannabiers ou maconheliers: os especialistas em maconha, uma elite de usuários preocupada com o sabor, o cheiro e o tipo de “onda” que a maconha vai dar.
O termo cannabier já foi utilizado em um artigo científico pelo antropólogo Marcos Verissimo, que apresentou, em 2013, sua tese de doutorado em Cultura Canábica na UFF (Universidade Federal Fluminense). O neologismo, escreveu Verissimo, “foi cunhado em função da aproximação significativa entre os círculos de apreciadores de cannabis oriundas de autocultivos domésticos e os círculos de apreciadores de vinhos (sommeliers). Quando as flores da maconha atingem o ponto de maturação, as plantas são cortadas, tratadas (processo denominado manicura), passando então à fase do secado (que pode durar algumas semanas). Portanto, da semeadura à degustação do resultado, o importante é ter sabedoria e paciência para se saber admirar o processo, como ocorre no caso dos vinhos mais consagrados”.
Assim como os vinhos, as floradas também ganham nomes –Moby Dick, Critical Mass, Destroyer, Blueberry– e são resultado da assemblage, digamos assim, entre plantas famosas no desconhecido mundo dos plantadores de maconha. Os cultivadores assinam suas criações sob pseudônimo e compartilham experiências pela internet, sobretudo através do site Growroom.
Quem é o cannabier? Em geral é jovem, profissional liberal e homem. Como me disse um deles, “um bando de machões que cultivam flores”. Há garotas, claro, que desfrutam dos blends especiais fornecidos por esta galera, mas as cultivadoras ainda são minoria. São os meninos que mais mergulham a fundo nas técnicas e macetes para produzir plantas dignas de campeonato. Verdadeiros nerds da maconha, os caras sabem absolutamente tudo sobre o assunto. Como seus congêneres especializados em cafés, chocolates, cervejas ou vinhos, é uma atividade que envolve muito orgulho e vaidade. Se chegarmos algum dia à legalização do uso e plantio, seguramente figurarão, ao lado dos enochatos, os maconhochatos.
Alberto* é advogado e cultiva meia dúzia de pés de maconha em um quarto, em sua casa, no Rio, sob luz artificial. Sua produção costuma causar sensação entre os amigos. O segredo, conta, é “frustrar sexualmente” a planta. Como a maconha que dá barato é apenas a planta fêmea, cultivadores experientes como ele sabem que, quanto mais a planta estiver pronta para a polinização e ela for impedida de acontecer, mais produzirá tricomas (os “cristais”, parte da planta rica em canabinoides). Ou seja, ficará mais potente. Daí a expressão “sin semilla” (sem semente) para designar a erva que é um must entre os maconhólatras. Para maximizar a produção de tricomas pela planta, são usadas técnicas como pequenas “massagens” para quebrar os galhos, e a água e a luz é milimetricamente controlada –na última semana antes da colheita, água e luz são cortadas, potencializando ainda mais a maconha.
“Meu carma no reino vegetal está péssimo”, brinca Alberto. Além de garantir a frustração sexual da pobre plantinha para seu prazer, o advogado diz que também é fundamental oxidar a flor após a colheita, fechando-a em um recipiente hermético por semanas ou meses. Qual a diferença de uma maconha para outra? “Na verdade, tem um tipo de maconha para cada pessoa ou momento. Se a pessoa quer relaxar, pode fumar uma Indica. Se prefere algo mais estimulante, uma Sativa. Se fosse permitido o autocultivo, o ideal era ter pelo menos três tipos de planta em casa: uma Indica, uma híbrida e uma Sativa”. Em uma festa recente de cultivadores, ele conta, chegaram a aparecer 37 tipos de flores diferentes.
Se os vinhos possuem os taninos, a maconha possui terpenos, moléculas responsáveis pelo odor da planta. Os terpenos vão influenciar no cheiro e no sabor da erva ao ser fumada. Falam-me de “notas” de manga, madeira, limão… “Fumamos um beck que deixava retrogosto de queijo”, me garante o antropólogo Paulo. No quintal de sua casa em Brasília, meio oculto entre três pés de mandioca para confundir eventuais helicópteros, uma nova planta de maconha começa a florescer. Ele pratica o autocultivo há dez anos. Um único pé é o suficiente para o consumo dele e de sua mulher, Marina, e ainda sobra para apresentar aos amigos. Como o ciclo da planta pode chegar a um ano, enquanto a outra cresce, eles fumam a que colheram.
Paulo é um cultivador orgulhoso de sua produção, mas aponta o que vê como exageros de alguns colegas com suas plantinhas de estimação. “Tenho um amigo que comprou até uma máquina de moer coco para fazer uma palha que ele usa como terra. Outro, italiano, controlava pelo celular a milimetragem da água e os nutrientes da planta que estava cultivando lá em Roma”, ri. “O que eu faço é basicamente mijar na planta, que é um NPK (fertilizante) natural. Coloco uns nutrientes na terra, mas não muitos porque acho que interfere no gosto”.
O blasézismo de seu comentário contrasta com o ar triunfal que exibe ao mostrar, dentro de um vidro, os “camarôes” ou berlotas (flores já secas) da última safra, em que chegou a um resultado “excepcional” –diz isso como se estivesse falando de grãos de café ou das uvas de um hipotético vinhedo. “Consegui produzir uma cannabis com resina leitosa, que dá uma onda mais excitante, criativa. A resina marrom é down, baqueia. Não serve para fumar e trabalhar, deixa a pessoa sem energia, largadona no sofá”, explana.
No Colorado, nos Estados Unidos, onde o uso recreativo da maconha, além do medicinal, foi liberado, há inclusive uma profissão em alta, a de “budtender” (trocadilho com bartender, sendo que “bud” é “camarão”). Trata-se do cara ou da mina que atende os clientes das lojas de maconha, exatamente como os vendedores das cervejas artesanais agora em moda no Brasil –ou como os funcionários dos coffee shops holandeses que sempre fascinaram os brasileiros. Capazes de indicar qual o tipo de maconha que você “precisa”, os budtenders possuem formação profissional, fornecida por cursos especializados. Ocannabusiness anda tão turbinado por lá que não estranhem se surgir um MBA em Maconha nos próximos anos.
“Que tipo de sensação você quer ter?”, “você é usuário frequente ou vai experimentar pela primeira vez?”, “quer maconha para trabalhar ou para jogar videogame e depois chapar?” pergunta o budtender ao freguês. A depender da resposta, o vendedor irá indicar que tipo de maconha é a ideal para o usuário. Apenas no primeiro mês de legalização para uso recreativo, estima-se que a economia da cannabis movimentou cerca de 14 milhões de dólares no Colorado, e ser budtender virou uma possibilidade de emprego atraente para os jovens –a mais “hot” delas, segundo alguns (leia mais aqui).
No Brasil, até outro dia, o máximo que se distinguia sobre os tipos de maconha era entre a maconha “solta”, produzida no Nordeste, ou a “prensada”, que vem do Paraguai. Algumas maconhas nacionais chegaram a alcançar fama, como a mítica “manga rosa”, de Pernambuco, ou a “cabeça-de-nego”, da Bahia. Reza a lenda que algumas maconhas campeãs mundo afora vieram delas. Houve um verão, em 1987, em que milhares de latas de maconha chegaram à costa brasileira, atiradas ao mar pela tripulação de um navio australiano interceptado pela Marinha, e, a partir daí, baseados potentes passaram a ser chamados de “da lata”. O curioso e hilário episódio virou um documentário dirigido por Tocha Alves e Haná Vaisman em 2012.
Mas sofisticação como se tem agora, nunca se viu. No site especializado Leafly, é possível descobrir que variedade de maconha “combina” mais com o temperamento ou necessidade do usuário, através de um teste online: se pretende ficar falante, relaxado, feliz, eufórico, sonolento… Ou por razões medicinais: as mais indicadas para insônia, fadiga, náusea (um efeito colateral comum a quem se submete à quimioterapia), pressão ocular, stress…
É tanto conhecimento que já começa a irritar. “Tem muita gente cuspindo no prato paraguaio que comeu”, provoca o psicanalista Pierre, de São Paulo. “Chegou-se a um nível de refinamento que outro dia fui numa festa e, quando souberam que o baseado que eu estava oferecendo era paraguaio disseram: ‘ah, não quero, não’. Que é isso? O fumo paraguaio tem seu valor, porque está sempre aí, nunca negou fogo. Qualquer dia acabará virando cult.”
O psicanalista admite, porém, que é muito difícil voltar para a maconha paraguaia, ou seja, para a erva vendida pelo narcotráfico, depois que se experimenta um baseado feito com cannabis autocultivada. “Quando se planta, além de fugir das redes de violência, se garante que a maconha não terá aditivos, porque o fumo paraguaio ninguém sabe o que contém. O nosso, não, é tóxico sem agrotóxico”, diz. Outra diferença é que, como em qualquer plantio em pequena escala, artesanal, todas as etapas são acompanhadas de perto pelo cultivador para que resulte numa erva “gourmet”, ao contrário do que ocorre com o narcotráfico, que utiliza grandes plantações e aproveita tudo da planta: galhos, folhas e até sementes. “O autocultivador, não, só aproveita as flores.”
Pierre cultivava um pezinho em casa, ao qual apelidara carinhosamente de “meu pé de maconha-lima”, e ter que causar a tal frustração sexual da planta lhe trouxe dilemas éticos. “Deixar a plantinha sem água na última semana mexia comigo, mas pensei em algo que me pacificou: adoro foie gras e não estou nem aí para o que fazem com o ganso. Então foda-se se a planta é torturada.” Acabou parando de plantar por achar trabalhoso demais e hoje fuma no “se-me-dão”, isto é, pede aos amigos maconheliers.
Rara mulher entre os cultivadores, a produtora musical Carla prefere não recorrer às “torturas”, fertilizantes e nutrientes em sua pequena plantação indoor em São Paulo. Sua maconha é inteiramente orgânica. Ela usa uma calda de fumo para combater os pulgões, estrume de composteira, casca de ovo, pó de café e… menstruação. Produz pouco, mas sua erva, diz, é perfumada e seu sabor pode ser frutado ou mais ácido. “Planto na lua nova e colho na lua cheia, e vou conversando com elas enquanto crescem.”
Ao contrário dos rapazes, Carla não usa seu talento como jardineira apenas para produzir maconha. Planta ainda maracujá, acerola e banana no quintal. Pergunto por que há mais meninos e meninas no clube dos cannabiers. “Acho que pela mesma razão pela qual há mais meninos na física e na matemática e mais meninas na pedagogia: o mundo é assim”, diz. “Mas eu vejo diferenças. Fui convidada para uma Cannabis Cup e me senti lisonjeada, mas percebi que era uma coisa de meninos, de competição. Acho que a gente vê diferente. Para mim plantar é uma forma de não depender dos homens para comprar ou fumar meu baseado.”
Se as plantas fêmeas cultivadas não germinam, onde essa turma consegue sementes? Trocando entre eles ou comprando pela internet em sites estrangeiros –o que, em tese, também é proibido por lei, mas decisões judiciais recentes têm dado certa segurança aos cultivadores. Em setembro, o juiz Fernando Américo de Souza, de São Paulo, livrou da cadeia um usuário que havia comprado, pela internet, 12 sementes de maconha na Bélgica e foi denunciado por “contrabando”. “O usuário que produz a própria droga deixa de financiar o tráfico, contribuindo para a diminuição da criminalidade”, disse o juiz (confira aqui).
Para os cultivadores, a prática da troca de sementes e da própria maconha para degustação entre os amigos é uma prova de que a idéia dos clubes de cannabis, como existem na Espanha e que estão previstos na lei uruguaia, pode ser a melhor saída para o problema, porque rompe o vínculo com o crime e tira do usuário a carga de “alimentar” o narcotráfico.
Enquanto isso não ocorre, a “elite” degusta iguarias e a enorme maioria dos usuários (estima-se que existam 1,5 milhão no Brasil) continua a consumir maconha malhada, palha e mofada. Será que até nisso quem nasceu para Sangue de Boi nunca chegará a Romanée Conti?
*Os nomes dos personagens desta reportagem foram trocados.
UPDATE: saiu no New York Times um perfil do primeiro crítico de maconha dos Estados Unidos (leia aqui). Profissão dos sonhos para muita gente…
UPDATE2: tenho que acrescentar ao post este vídeo sobre “os esnobes da maconha”. Hilário.
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