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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

sábado, junho 27, 2015

Afinal, a guerra civil é sempre um luxo decidido pelos homens poderosos. E nós, os demais, seremos apenas observadores ou soldados armados ou não.

Por Fábio de Oliveira Ribeiro

A primeira coisa que causa estranhamento àqueles que ingressam numa Faculdade de Direito é a distinção entre o “ser” e o “dever ser”. As Leis, que permitem, regulam ou proíbem condutas humanas pertencem ao domínio do “dever ser”, ao universo dos valores e potencialidades. A sociedade a que as Leis se destinam pertencem ao domínio do “ser”, ao mundo dos fenômenos tais como estes ocorrem no conflituoso mundo em que vivemos. A tensão entre o “ser” e o “dever ser” é evidente. As Leis nem sempre atuam como deveriam. Os homens poderosos geralmente fazem o que desejam. Os costumes se modificam e condenam algumas Leis ao desuso. Outras nem chegam a ter eficácia apesar de serem válidas.
Uma Constituição é feita para durar, mas nenhum regime político é eterno. Ao estudar História aprendemos isto. Roma foi uma Monarquia, virou uma República e depois se transformou num Império que floresceu e decaiu sendo dividido em duas metades, cada uma delas deixando de existir algum tempo depois  (a metade Ocidental foi saqueada por bárbaros em 476 dC; a metade Oriental sucumbiu finalmente aos otomanos em 1453 dC). O Brasil começou como Colônia, foi elevado à condição de Reino Unido à Portugal e Algarves, declarou sua independência e virou um Império que deu lugar à República instável, que oscila entre períodos de democracia e ditaduras brutais. Constituições republicanas tivemos várias (1891, 1934, 1937, 1946, 1967 e 1988).
Sob cada uma das Constituições republicanas, costumes herdados da era Colonial e Imperial foram preservados. O mais danoso deles é a tendência de interpretar e aplicar as Leis segundo a classe social daqueles que são submetidos a julgamento. A brutal distinção entre as duas metades da sociedade brasileira pode ser vista neste exato momento. O próprio STF sacramentou esta distinção ao julgar pessoas sem foro privilegiado no Mensalão do PT se recusando a fazer o mesmo no Mensalão do PSDB. O resultado não poderia deixar de ser desigual: o Mensalão do PT foi sentenciado com exagerado rigor pelo STF enquanto o Mensalão do PSDB acabou sendo silenciosamente encaminhado para a prescrição em Minas Gerais. O MPF fustiga os petistas suspeitos envolvidos na Lava a Jato, mas o Ministério Público de São Paulo pega leve com os tucanos que foram mandantes e beneficiários da roubalheira no Metrô-SP.
Aqueles que observam com atenção o desenrolar dos fatos, tendem ora a valorizar a Constituição escrita ora a reconhecer que não temos uma Constituição e sim duas constituições. Há aquela que foi discutida, redigida e promulgada em 1988 e que deveria se aplicar a todos os brasileiros. Há uma outra, produto dos refinamentos e atavismos judiciários, que garante a presunção de inocência a criminosos que poderiam ser culpados (caso dos donos do helicóptero com 450 quilos de cocaína e dos tucanos paulistas que organizaram a roubalheira no Metrô-SP) e que permite a condenação de réus "menos iguais" porque eles não provaram sua inocência (caso de José Dirceu, voto de Luiz Fux).
Há um ditado popular que evoca de maneira eloquente as duas constituições em vigor no país: Cadeia no Brasil é para os três 'pês': preto, pobre e prostituta". Aqueles que não se ajustam à esta definição, ou seja, homens brancos, ricos e moçoilas bem nascidas nunca são recolhidos à prisão mesmo quando cometem crimes. O espetáculo da Lava Jato, comandado com maestria por um ator togado que gosta mais do estrelato que do recato lhe exigido pela Lei Orgânica da Magistratura, parece ter modificado a realidade brasileira. Os mega-empresários começaram, enfim, a ser presos. Doravante teremos apenas uma Constituição? Mas que Constituição será esta?
Maquiavel afirmou que:
“Nada é mais perigoso do que inflamar a cada dia, entre os cidadãos, novos ressentimentos pelos ultrajes cometidos incessantemente contra alguns destes, como acontecia em Roma depois do decenvirato.De fato, todos os decênviros, e muitos outros cidadãos, foram em várias oportunidades acusados e condenados. O temor era geral entre os nobres, que não viam o fim dessas condenações antes que se destruísse toda a sua classe. Disto teria resultado inconvenientes dos mais desastrosos para a república se o tribuno Marco Duélio não houvesse posto termo à situação proibindo, durante um ano, citar ou acusar qualquer cidadão romano, o que fez com que os nobres recobrassem a segurança.
Este exemplo mostra como é perigoso para uma república ou para um príncipe manter os cidadãos em regime de terror contínuo, atingindo-os sem cessar com ultrajes e suplícios. Nada há de mais perigoso do que este tipo de procedimento, porque os homens que temem pela própria segurança começam a tomar todas  as precauções contra os perigos que os ameaçam: depois, sua audácia cresce, e em breve nada mais pode conter sua ousadia.” (Comentários Sobre a Primeira Década de Tito Lívio, editora UNB, Brasília, 1994, p. 146).
As sábias palavras de Maquiavel devem ser objeto de meditação cuidadosa no caso do Brasil. Afinal, como vimos, o próprio Poder Judiciário sempre se encarregou de aplicar o rigor da Lei para pobres, pretos e putas, reservando os privilégios senhoriais da constituição não escrita para aqueles que estão no topo da pirâmide socio-econômica.  
Aqueles que nunca estiveram acostumados ao rigor da Lei, os mega-empresários que foram presos por ordem de Sérgio Moro, certamente estranharão mais o comportamento dele do que os “blogueiros sujos” que o criticam o Juiz Federal porque ele estaria fazendo uma distinção entre tucanos e petistas envolvidos na Lava Jato. A reação pública e publicada de duas construtoras às decisões tomadas pelo Juiz é mais importante do que aparenta ser. Ela inaugura uma nova relação entre a sociedade brasileira - estou me referindo aqui à “boa sociedade”, aquela composta pelos homens poderosos acostumados a comprar impunidade e vingar ultrajes grosseiros - e  o Poder Judiciário.
Para ferir mortalmente o PT e exibir Lula numa jaula no horário nobre da Rede de TV que o premiou, Sérgio Moro atravessou o Rubicão. O Juiz da Lava Jato fez o impensável: ele revogou os privilégios senhoriais da constituição não escrita que sempre esteve em vigor sob todas as constituições republicanas do Brasil. O que ele fez não encontra paradigma na História do nosso país. Nem Getúlio Vargas no auge de seu poder em 1938, nem Costa e Silva no período mais brutal e tenebroso da Ditadura Militar, tiveram ousadia e coragem para meter a ferros homens brancos, bem nascidos, ricos e donos de vasto cabedal. As vítimas das tiranias brasileiras sempre foram os “outros”: os intelectuais pobres (como Graciliano Ramos), os estudantes abusados (como o jovens José Dirceu e Dilma Rousseff) e os mulatos ousados e destemidos (como Marighella).
O espaço para conciliação das elites deixou de existir no Brasil. O Rubicão atravessado por Sérgio Moro impede que alguns ricos (aqueles que lucraram com os governos Lula e Dima Rousseff) se identifiquem naturalmente com os outros ricos (os que estão ao lado de FHC, Sérgio Moro e os irmãos Marinho). Ninguém precisa ser especialmente inteligente para antecipar turbulências inevitáveis num futuro próximo. Afinal, a guerra civil é sempre um luxo decidido pelos homens poderosos. E nós, os demais, seremos apenas observadores ou soldados armados ou não.

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