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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

terça-feira, junho 30, 2015

"O Brasil criminalizou o debate sobre drogas"


Para jurista, repressão à Marcha da Maconha, prisão de usuários e censura a uma propaganda em São Paulo indicam “interdição do debate”

A “onda conservadora” que tomou o Brasil desde as últimas eleições retrocedeu o debate sobre a regulamentação das drogas no País. Enquanto a Europa descriminaliza o consumo e estados americanos legalizam o auto cultivo da maconha, a repressão em terras brasileiras recrudesce. Jovens vestindo roupas com a imagem da erva vão parar na cadeia enquanto a Empresa Metropolitana de Transportes Urbanos de São Paulo censura uma campanha nos ônibus que questiona a chamada guerra às drogas.  
Vice-presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais e secretário-executivo da Plataforma Brasileira de Política de Drogas, o jurista Cristiano Maronna afirma em entrevista a CartaCapital que o debate sobre o tema no Brasil foi simplesmente criminalizado. “Ou você ama essa política pública, ou não há espaço para discuti-la.”
Maronna lembra que até um general da reserva do Exército, o atual presidente da Guatemala, Otto Pérez Molina, considera ultrapassada a estratégia de repressão e sugere alternativas pacíficas. "A mudança dessa política é uma discussão necessária porque todos estão sofrendo, menos tráfico.”
CartaCapital: Como o senhor avalia o veto da EMTU à circulação de charges que pedem a legalização das drogas?
Cristiano Maronna: A censura à campanha é um dos eventos mais contundentes de como a guerra às drogas interdita o debate. Ou você ama essa política pública, ou não há espaço para discuti-la. O debate é criminalizado. Uma decisão absurda, arbitrária contra uma campanha de conscientização e debate público. As charges não promovem ou glamurizam as drogas, mas discutem a violência policial. O Brasil registra 57 mil mortes violentas por ano, grande parte em decorrência da guerra às drogas. E o Brasil tem uma das maiores taxas de letalidade policial. A polícia brasileira é a que mais mata e mais morre no mundo. Portanto, esse enfrentamento pela guerra fracassou.
CC: E o que senhor achou da prisão de um jovem no interior de São Paulo, dia 1º de junho, por vestir uma bermuda com desenhos da folha de maconha?
CM: A prisão do rapaz é uma ilegalidade, um abuso de autoridade. O Supremo Tribunal Federal julgou constitucional a Marcha da Maconha em 2011, deixando claro que condutas como vestir camiseta ou boné com desenhos da erva não é crime, é manifestação do livre pensar, próprio da democracia, onde não há assuntos-tabu. Desde que não seja discurso de ódio, todo debate é permitido.
CC: Espera-se que até o final do semestre o Supremo vote um recurso extraordinário sobre a posse de drogas. O que isso significa?
CM: Esse recurso vai dizer se o Estado tem legitimidade de incriminar a posse. É uma ótima notícia. O relator Gilmar Mendes estava com esse recurso desde 2011. Aguardamos com ansiedade. Em casos idênticos, as Supremas Cortes da Argentina e Colômbia decidiram que o Estado não tem legitimidade para incriminar a posse para consumo pessoal porque o uso é individual, não compete ao Estado interferir nessa questão porque não é papel dele fazer a educação moral de pessoas adultas na medida que não haja lesão ao interesse de terceiros. Quer usar tabaco, fármacos, bebida alcoólica? O único prejudicado é quem faz o uso. A jurisprudência que justificava a detenção por posse entendia que quem portava representava perigo de expansão do consumo, o que é juridicamente inaceitável.
CC: As prisões por posse acabam automaticamente?
CM: Na prática, se não for estipulada uma diferença objetiva entre a quantidade de droga que separa o usuário de um traficante, o sistema judicial vai continuar considerando traficante os pobres e, usuários, os mais ricos, gerando um superencarceiramento. Um em cada quatro presos respondem por tráfico de drogas no Brasil, muitos deles são apenas usuários. Em Portugal, decidiu-se que um portador é considerado usuário se estiver carregando até 30 gramas de maconha, mas cada droga precisaria de uma quantidade específica.
CC: A legalização do consumo será o próximo passo?
CM: Se o artigo 28 da Lei de Drogas for considerado inconstitucional, a arbitrariedade policial deve reduzir porque a polícia tem dificuldade em compreender a vida em democracia. É o começo de uma regulamentação. Depois de definir a quantidade, devemos discutir a autorização para o auto cultivo da maconha e a criação de cooperativas e clubes sociais, como acontece em outros países, como na Espanha. Lá, usuários se reúnem nesses clubes, onde podem ter acesso à cannabis com regulação responsável, redução de danos, prevenção e indicação de tratamento em casos necessários.
CC: O Brasil está na contramão do resto do mundo?
CM: A gente vive uma onda conservadora que chegou à política de drogas. O mundo inteiro discute o assunto. A ONU vai organizar a Ungass [sigla em inglês para Sessão Especial da Assembleia Geral] em 2016 para tratar exclusivamente do problema mundial das drogas. Será a primeira oportunidade desde 1961 para redirecionar essa política. Na América Latina, altas lideranças clamam um debate para novas alternativas de abordagem. Além do Uruguai, que aprovou a regulação de cannabis, o presidente da Guatemala [Otto Pérez Molina] fez um chamado para a discussão no continente, o do México [Enrique Peña Nieto] vem discursando na mesma linha. A Jamaica tem exibido novas iniciativas ao aprovar a regulamentação e descriminalização. Nos Estados Unidos, cinco estados regulamentaram a cannabis para uso recreativo e 25 liberaram a versão medicinal. Outros cinco plebiscitos estão marcados para o ano que vem para decidir o tema. Quase nenhum país na Europa criminaliza o uso e vários admitem clubes sociais.
CC: Como o Brasil deve conduzir o debate?
CM: Em nosso País, convivemos com drogas mais perigosas consumidas livremente, como o álcool. A grande dificuldade se deve ao conservadorismo social, mas a mudança dessa política de drogas é uma discussão necessária porque poucos ganham. Todo o resto está sofrendo, menos o tráfico. 
*cartacapital

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