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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

segunda-feira, maio 28, 2012

Argentina: outro silêncio que se rompe

 

Via CartaMaior
A cumplicidade ativa entre a Igreja Católica e a mais bárbara das ditaduras militares que sacudiram a Argentina nunca foi segredo para ninguém. Sua dimensão e profundidade, sim. O número de capelães militares denunciados como tendo assistido, impávidos ou quase, a sessões de torturas é amplo o suficiente para deixar claro que nada daquele horror podia ser ignorado pela hierarquia eclesiástica e, portanto, pelo Vaticano. O que agora se revela é estarrecedor.

Eric Nepomuceno, de Buenos Aires
A Argentina despertou no domingo, dia 27 de maio, com um silêncio a menos: um longo texto do veterano jornalista Horacio Verbitsky, no combativo ‘Página 12’, mostra como foi confirmado e reconhecido o que todo mundo, ou quase, desconfiava. Sim: a Igreja Católica admitiu formalmente, e diante da Justiça, que desde pelo menos 1978 sabia que a ditadura encabeçada pelo general Jorge Rafael Videla assassinava presos políticos. E mais: não satisfeita em saber e se omitir, a cúpula da Igreja Católica não se furtou a examinar, junto ao próprio Videla, como manipular a informação sobre esses assassinatos, como lidar com a aberrante figura do ‘desaparecido’.
A cumplicidade ativa entre a Igreja Católica e a mais bárbara das ditaduras militares que sacudiram a Argentina nunca foi segredo para ninguém. Sua dimensão e profundidade, sim.
O número de capelães militares denunciados como tendo assistido, impávidos ou quase, a sessões de torturas é amplo o suficiente para deixar claro que nada daquele horror podia ser ignorado pela hierarquia eclesiástica e, portanto, pelo Vaticano. As palavras públicas de padres, bispos e cardeais em apoio à ‘cruzada dos militares no combate ao caos’ – assim chamavam o genocídio – não eram mero jogo de cena para acobertar um trabalho humanitário feito nos bastidores, na tentativa de salvar vidas e evitar mais tormentos. Não, não: o papel nada cristão da hierarquia católica durante aqueles anos de horror e mortandade já foi revelado, mas, como acaba de ficar claro uma vez mais, ainda falta muito a ser desvendado, muito silêncio a ser rompido.
O que agora se revela é estarrecedor. Por exemplo: o cardeal Raúl Primatesta, arcebispo de Córdoba naquele 1978 de péssima memória, chegou a advertir o general Videla, durante um almoço junto a outros altos mandos da Igreja Católica, que o costume de ‘desaparecer’ presos políticos – ou seja, assassinar e depois sumir com os corpos – era um método que poderia ‘trazer más consequências’. Ele quase disse o seguinte: matar, dá para entender; sumir com os corpos, não.
O arcebispo de Buenos Aires, cardeal Juan Aramburu, foi na mesma direção: disse que era preciso encontrar um jeito para que as pessoas parassem de fazer perguntas sobre os desaparecidos. Vale repetir: o Vaticano sabia de tudo, o tempo todo.
Poucos dias antes da revelação feita por Verbitsky, outro documento – elaborado por médicos argentinos – denunciou a participação de pelo menos mil e duzentos de seus colegas em crimes de lesa humanidade. Acompanhavam ou participavam de sessões de tortura, supervisionavam o andamento dos tormentos, indicavam quando parar ou, em casos extremos e sem volta, quando liquidar de vez com a vítima. Não apenas médicos: também enfermeiros, psicólogos e paramédicos foram cúmplices ativos e diretos. Havia médicos civis que se juntavam aos seus companheiros fardados. Todos eles tiveram participação direta no mais abominável dos crimes cometidos pela ditadura que sufocou o país entre 1976 e 1983: separar os recém-nascidos de suas mães nos centros de tortura, e entregá-los a famílias que ninguém sabe ao certo quais foram.
Havia pelo menos 30 maternidades clandestinas. As mulheres davam à luz algemadas e encapuzadas, para não ver a cara dos médicos que as atendiam. Os bebês eram encaminhados a doações ilegais, as mães eram encaminhadas ao matadouro. Pelo menos 500 delas morreram sem saber o destino de seus filhos.
Também eram médicos os que aplicavam injeções dopantes em prisioneiros que eram retirados dos centros de tortura, embarcados vivos em aviões e, vivos, atirados no oceano Atlântico ou nas águas do rio da Prata. Não se conhece nenhuma estatística confiável sobre quantos dos desaparecidos desapareceram assim. O que sim, se sabe, é que dos cinco mil presos que passaram pelo mais notório centro de tormentos, o que funcionava na antiga ESMA (Escola Superior de Mecânica da Armada), pouco mais de 200 sobreviveram. Quantos dos outros foram jogados de aviões no vazio?
Existe um claro pacto de silêncio entre esses assassinos que um dia fizeram o juramento de Hipócrates, em que se comprometeram não a ser hipócritas para sempre, mas a, para sempre, salvar vidas humanas. E é esse pacto de silêncio que precisa ser roto, para que se saiba quem é quem entre os médicos do país.
Sim, é verdade: quanto mais se avança, na Argentina, no caminho da busca da verdade, do resgate da memória e do cumprimento da justiça, mais silêncios são rompidos, mais horrores são revelados. Mais justiça é feita.
Quanto mais a Argentina avança na revelação da verdade de seus tempos de opróbrios, mais se livra do peso e da mancha da impunidade. E mais claro fica que um país que não conhece a verdade do próprio passado não saberá merecer o próprio presente, e muito menos saberá aproximar o futuro.
Um vasto silêncio – o da cumplicidade da Igreja Católica com o regime genocida – se rompe cada vez mais. Outro vasto silêncio – o dos médicos transformados em carniceiros – começa a se romper de vez.
E assim, rompendo silêncios, removendo sombras, a Argentina ouve cada vez mais a própria voz, e sabe, cada vez mais, da importância da claridade.
*GilsonSampaio

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