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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

terça-feira, julho 14, 2015

“A política de drogas criou esse pesadelo em que hoje vivemos” LEGALIZE-JÁ

“A política de drogas criou esse pesadelo em que hoje vivemos”


Gilberta Acselrad (Foto: Gianne Carvalho/Estadão)
Gilberta Acselrad diz ser preciso relembrar antigos costumes para quebrar tabus. “No passado, conviver com drogas não foi tão problemático. Elas são parte da experiência humana.”
Perguntas não faltaram. Entre 1990 e 2012, em escolas públicas e particulares do Rio de Janeiro, jovens de 14 a 17 anos não tiveram medo de falar sobre drogas. Foi neste período que Gilberta Acselrad, mestre em Educação e coordenadora de Saúde Pública e Direitos Humanos da Flacso-Brasil (Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais), reuniu 156 questões ouvidas de estudantes do ensino fundamental e médio para o livro Quem tem medo de falar sobre drogas? Saber mais para se proteger, recém-lançado pela Editora FGV.
Convidada, a toda hora, a discutir o tema nas escolas, decidiu “subverter a prática usual da palestra centrada nas drogas proibidas por lei”, optando, segundo contou em entrevista por e-mail, “por acolher as perguntas dos adolescentes, estabelecendo um diálogo com eles”. Ao longo dos anos colecionou centenas de questionamentos que surgiram “da necessidade de ouvir os que mais sofrem com a política de drogas atual”.
E mais do que dúvidas, disse ela, as perguntas “revelam o compromisso dos adolescentes com uma questão que é de interesse público e evidencia que, em nosso País, a política de drogas pouco tem avançado”. “A maioria das pessoas evita falar sobre drogas. Mas os jovens não têm medo dessa conversa. Nós, adultos, precisamos dialogar com eles, sem medo de fazer apologia, porque informar, afirmar a importância de estar atento e de se proteger é também um modo de reduzir danos.” A seguir, os principais trechos da conversa.
O STF se prepara para julgar se o porte de droga para consumo próprio deve deixar de ser considerado crime. Qual é a sua expectativa?
Pode haver avanços no sentido de mudanças na lei e na política de drogas vigente. Resta saber se serão aprovadas, paralelamente, medidas práticas que garantam a aplicação da descriminalização do uso, de forma democrática, alterando a aplicação desigual da legislação que tem vigorado até hoje. Descriminalizar o uso e manter produção e comércio na ilegalidade cria impasses.
De que forma?
Para evitar contato com o mercado ilegal e violento, alguns usuários podem trazer consigo quantidades maiores de drogas; outros, de alguma forma, encontram no pequeno tráfico um meio de sustentar seu uso. A legislação sobre drogas, nos últimos cem anos, tem se pautado pela repressão. O Brasil precisa de uma política de drogas democrática.
Há alguns dias, Paulo Gadelha, presidente da Fiocruz, defendeu a descriminalização do uso de drogas. Qual é o pesodessa manifestação?
Mesmo com a descriminalização, o problema jurídico continua. Nossa lei ainda criminaliza a posse de drogas ilícitas para uso pessoal. As penas previstas são descritas no capítulo sobre os crimes – advertência, prestação de serviços à comunidade, comparecimento a programa educativo, admoestação, multa. Embora tenha sido abolida a pena privativa de liberdade, vivemos numa sociedade com muitas desigualdades econômicas, sociais e, na hora do flagrante, os direitos de cidadania nem sempre são respeitados. Penas alternativas beneficiam os que pertencem às classes média e alta. Quando não são brancos, usuários pobres e que moram nas periferias ou em favelas flagrados pela polícia com droga ilegal – com pequena quantidade, sugerindo uso pessoal – são autuados sistematicamente como traficantes – mesmo quando sozinhos e desarmados. E são muitos os prejuízos decorrentes dessa prisão. Eles perdem emprego, têm de abandonar a família…
Então, a guerra às drogas é uma batalha perdida?
Em 2009, a reunião da ONU em Viena reconheceu o fracasso dessa guerra. A política antidrogas se manteve, mas abriram-se novas frentes. Criou-se a Comissão Latino-Americana sobre Drogas e Democracia formada por ex-presidentes (a iniciativa partiu de Fernando Henrique Cardoso do Brasil, César Gaviria da Colômbia e Ernesto Zedillo do México) que discutem ações alternativas; documentários foram produzidos divulgando experiências democráticas de gestão das drogas; houve manifestações públicas de apoio à descriminalização e legalização do uso medicinal e recreativo da maconha. As notícias sobre drogas, antes restritas às páginas policiais e de saúde, ganharam amplos espaços na mídia, fortalecendo programas sociais que já vinham sendo realizados na óptica de redução de danos, discutindo a legalização, com regulamentação e controle do Estado.
Qual é o caminho?
Percebe-se que a política antidrogas, que se tornou um problema com graves repercussões políticas, jurídicas e educacionais, precisa ser substituída pela legalização e regulamentação de todas as drogas. É a educação, o projeto de futuro de cada indivíduo que pode ajudar cada um em suas decisões. Caberá ao Estado informar de forma mais completa e científica sobre cada uma das substâncias, controlar sua elaboração e sua qualidade e cuidar daqueles que necessitem de ajuda.
Como vê, por exemplo, o programa De Braços Abertos da Prefeitura de São Paulo que, desde janeiro de 2014, oferece aos usuários de crack a oportunidade de trabalhar na zeladoria da cidade, ganhando R$ 15 por dia?
Programas que associam tratamento e inclusão social têm chances de reverter os usos problemáticos de drogas, sejam elas quais forem. Com esses R$ 15 por dia, a inclusão pretendida, a permanecer nesse patamar, será bem precária. Tais programas funcionam, mas precisam assegurar possibilidades variadas de formação profissional de acordo com o mercado atual de empregos, fortalecendo alguma formação prévia que o usuário já tenha, possibilitando uma real inclusão social.
Os contrários ao programa dizem que a Prefeitura estaria ajudando a alimentar o tráfico.
Eles expressam o preconceito criado pelo proibicionismo, que fortalece a impressão de que algumas pessoas nada têm a ver com os males do nosso tempo que, no entanto, são de fato produzidos social e historicamente.
Durante a Flip, houve uma cena curiosa durante um dos debates. Em reação à pergunta sobre quem na plateia concordava com a legalização da maconha, a maioria levantou a mão. Já sobre a cocaína a adesão não foi tão unânime. Isso quer dizer que, mesmo aqueles que estão dispostos a falar sobre drogas, estão rodeados por tabus?
Tabus e falta de informação caminham perigosamente juntos e não facilitam o esclarecimento. Precisamos recuperar a memória de outros usos e costumes, de modo a poder, assim, tomar decisões mais adequadas. As drogas fazem parte da experiência humana, da cultura. É preciso falar sobre elas, saber mais para poder se proteger. A produção, o comércio e o uso de quaisquer drogas implicam em riscos cuja percepção mudou ao longo da história. O que ontem se usava, até mesmo para curar doenças – a heroína para as afecções respiratórias, a cocaína para minorar a dor de dentes –, hoje virou um bicho de sete cabeças. O que já foi proibido – o álcool, o tabaco – hoje é consumido, tantas vezes sem o controle devido. O problema da droga em geral não existe em si, mas é o resultado do encontro de um produto, uma personalidade e um modelo sociocultural.
Como assim?
Isso quer dizer que qualquer pessoa, a qualquer momento da vida, poderá encontrar em seu caminho alguma substância psicoativa – mas a maioria não ficará doente por isso, não terá maiores problemas, o que significa dizer que, diante da droga, não existe um destino igual para todos. No passado, a convivência com as drogas não foi tão problemática mas o proibicionismo, a partir do século 20, tornou ilícitas algumas drogas até então consumidas legalmente. A partir daí, a política de drogas sonhou com uma sociedade sem drogas que, de fato, nunca existiu e criou esse pesadelo em que vivemos. Recuperar a memória de outros usos e costumes e pensar coletivamente mecanismos de controle que possam nos proteger de usos problemáticos me parece um bom caminho.
Os brasileiros não têm, por exemplo, com relação ao álcool, o mesmo preconceito que têm em relação à maconha.
Os efeitos de qualquer droga dependem da relação que cada um estabelece com ela. Mas a política proibicionista termina gerando descontrole total da produção e do comércio daquelas que foram tornadas ilícitas. O preconceito em relação à maconha e a tolerância em relação ao álcool se explicam pela ilegalidade da primeira e pela legalidade da segunda.
O tabu em relação às drogas faz com que elas se tornem mais interessantes para os jovens?
A adolescência é a porta de entrada para a vida adulta, o momento em que os jovens se lançam no mundo, com particular poder de observação e ação diante do que se passa à sua volta. Correr riscos faz parte da construção da identidade e a experiência da droga é um desses riscos. Com a proibição de algumas drogas, a informação não circula. Ficam restritos ao domínio de especialistas os conhecimentos sobre diferentes usos, formas de se proteger de usos problemáticos, possibilidades de tratamento, qualidade duvidosa de substâncias produzidas e comercializadas ilegalmente. Desta forma, proliferam preconceitos, tabus. É curioso lembrar que, quando se é criança, ouvem-se as histórias infantis cheias de poções mágicas e heróis que recorrem a elas para superar seus problemas. Com elas, Alice, pelo menos no país das maravilhas, crescia, diminuía, aprendia a superar os obstáculos e a enfrentar a vida. Menos informadas, Branca de Neve e Bela Adormecidacomiam maçãs envenenadas, não sabiam lidar com o mundo, ficavam entorpecidas, até que um príncipe aparecia para salvá-las. Quando crescemos, aí a história é outra. As poções que antes ajudavam podem tornar-se perigosas e problemáticas. Desde sempre o uso de quaisquer drogas psicoativas implica em riscos mais ou menos graves, sendo importante criar mecanismos de proteção para que os jovens possam contorná-los.
Divulgado há um mês pelo governo federal, o Mapa do Encarceramento mostrou que crimes contra o patrimônio e de drogas correspondem a cerca de 70% das causas de prisão. Se não lidássemos com as drogas pelo terror, também resolveríamos a questão carcerária do País?
Acredito que a legalização e a consequente regulamentação de todas as drogas seja o melhor caminho. Se conseguirmos virar essa página de extrema violência, criada pelo proibicionismo, abolindo a pena de prisão para a produção, comércio e uso de todas elas, estaremos de fato optando por estender o que já foi feito em relação ao álcool, ao tabaco e a todos os medicamentos psicoativos – legalização, controle e fiscalização, que reduzem danos, sempre buscando aprimorar os mecanismos de controle.
A senhora também diz que pouco ou quase nada se fala do prazer relacionado às drogas. Elas, de fato, são vistas como uma espécie de fuga?
Todas as sociedades conheceram o uso de drogas como forma de ter prazer, conhecimento de si e do mundo ou para controlar a dor física ou psíquica. Drogas alteram a percepção da realidade, a quantidade e a qualidade da consciência. A história das drogas é tão longa quanto a da humanidade e paralela a esta. É próprio de quem tem consciência querer experimentar com a consciência. Droga nem sempre é fuga, pode ser encontro. O que dá prazer pode causar sofrimento, tudo depende da forma como conseguimos nos relacionar com elas e do contexto em que se dá esse uso. Prova disso é que para uns a droga é mera experiência que passa, se torna controlada; para outros pode trazer destruição e morte./THAIS ARBEX
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*http://blogs.estadao.com.br/sonia-racy/a-politica-de-drogas-criou-esse-pesadelo-em-que-hoje-vivemos/

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