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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

sábado, novembro 06, 2010

O SISTEMA

Da Democracia - Parte I








 

Vivemos em democracia.
A maioria dos Países do mundo são democracias; com várias nuances, mas todas baseadas no mesmo conceito: δῆμος (démos), povo, e κράτος (cràtos), poder, e significa governo do povo.
A invenção é antiga, apareceu na Antiga Grécia por volta do 500 antes de Cristo. Mas, além das experiências grega e romana, ficou como curiosidade ou pouco mais até o final do 1700.
A partir de então começou a renascer, antes nos círculos dos intelectuais (Rosseau, Mill), a seguir nas massas e, após a Segunda Guerra Mundial, como forma de governo predominante.
Hoje é natural viver numa democracia, e costumamos olhar com um misto de comiseração e pena para aqueles Estados que ainda estão agarrados a conceitos como o totalitarismo ou a monarquia não constitucional. Mesmo assim, constituem excepções destinadas a desaparecer para dar lugar a novos regimes democráticos.
Nem sequer há sérias discussões acerca de possíveis alternativas: presente e futuro devem ser democráticos, ponto final.
Este é um erro típico da nossa sociedade arrogante: assim como esquecemos que haverá uma ciência do século XXII, do XXIII e assim por diante, da mesma forma não consideramos o facto que no futuro poderão surgir novos regimes políticos.
O que seria perfeitamente natural.
A democracia não é justa, pelo contrário.
Consideramos um caso limite, numa comunidade de 100 pessoas: 49 querem comer só vegetais, 51 só carne.
Como os últimos são a maioria, é implementado um governo democrático que subvenciona a compra de costeletas. E a vontade dos outros 49? No lixo.
É justiça esta?
Na verdade a democracia é um regime que satisfaz os desejos da maioria, não da totalidade do povo.
Dizia Lenin:
A democracia é um estado que legitima a subordinação da minoria à maioria, e é comparável a uma organização criada para o uso sistemático da força por uma classe contra outra, uma parte da população contra a outra.
E ao ir ainda mais atrás, descobrimos que já Platão tinha individuado os problemas da democracia:
Cada governo cria leis para o seu próprio proveito: a democracia faz leis democráticas, a tirania tirânicas, e da mesma maneira fazem os outros governos. E depois de ter feito as leis, eis que anunciam que o justo para os governantes identifica-se com aquilo que é, pelo contrário, o útil deles, e quem se afasta é punido conforme a lei é a justiça. É aí que reside, meu bom amigo, o que eu digo, idêntico em todas as polis, o útil do poder estabelecido. Mas, se bem me lembro, esse poder detém a força. Assim isso significa, para quem pode pensar, que, em qualquer caso o que é justo é sempre idêntico ao lucro do mais forte.

Nas palavras de Platão pode ser vislumbrada uma tendência hoje bem conhecida: a das democracia sa transformar-se em oligarquias.
Formada pelos termos gregos ὀλίγοι (oligoi), poucos, e ἀρχή (archè), poder ou comando, a oligarquia é o sistema de governo no qual quem manda é um restrito grupo de pessoas.
A oligarquia é o verdadeiro rosto das modernas democracias.
A escolha que podemos fazer com o voto é, na realidade, uma escolha muito limitada: poucos partidos, (alguns dos quais sempre condenados à oposição), com políticos de profissão presentes no sistema ao longo de décadas.
Com a recente bipolarização da política dos Países ocidentais, a situação tornou-se ainda pior: agora a escolha só pode ser entre a área de esquerda (geralmente um partido ou movimento, em teoria, mais sensível aos assunto sociais) e de direita (mais a favor do livre mercado).
Os restantes partidos não têm possibilidade de alcançar o número de votos suficientes para governar sozinhos; a única possibilidade é entrar numa coligação (e pesados compromissos) com um dos dois partidos maiores.
Assim, um sistema com dois partidos, gerido por políticos de profissão.
Por esquisito que pareça, costumamos definir isso como "democracia".
Ipse dixit.

Da Democracia - Parte II


A Democracia é hoje vendida como uma necessidade.
As antigas ditaduras falharam: falar ainda de fascismo ou de comunismo é um anacronismo. Hoje em dia o controle pode ser efectuado com armas mais eficazes.
Com o fim de melhor dominar as massas, é preciso convence-las de ser livres, de poder decidir o próprio destino.
A farsa do voto democrático é simplesmente isto: formar uma espécie de governo, expressão da vontade popular, que possa implementar as decisões tomadas por outras forças além daquelas representadas no parlamento.
Hoje somos chamados a escolher entre duas posições aparentemente diferentes, eleger pessoas que afirmam representar "o novo" enquanto são perfeitamente integradas no sistema, muitas vezes há décadas.
As políticas que são realizadas são sempre as mesmas, funcionais aos grandes centros de poder financeiro, centros de poder que preferem aqueles movimentos que se apresentam como "progressistas": porque é evidente que certas medidas que afectam o cidadão são mais facilmente implementadas por aqueles que pretendem fazê-lo "em defesa das camadas mais desfavorecidas da sociedade".
Os governos de esquerda são, de facto, os que podem mais facilmente implementar os programas de "direita", como as mais recentes experiências em terras portuguesas mostram claramente.
A propaganda do "sagrado direito e dever de votar" fez o resto, e o sistema democrático provou ser o mais funcional para os objectivos das oligarcas, que continuam a governar imperturbáveis enquanto os "eleitores" estão demasiado ocupados a discutir se for melhor o partido verde ou o amarelo.
Mas, no fundo, palavras como esquerda e direita são chamarizes sem sentido.
Somos chamados a expressar uma preferência entre os dois "lados", mas não é uma verdadeira escolha.
Como preferem ser torturados? Com a electrocussão ou com um alicate?
Direita ou esquerda?
O importante é que as pessoas não possam reparar na operação, e fiquem assim calmas na convicção de manter o poder.
Como já realçámos no artigo O Pior Inimigo, este é um sistema genial.
Reprimir as vozes dissidentes afinal é contraproducente, muito melhor deixa-las desabafar na indiferença geral.
O actual sistema joga com os medos atávicos das pessoas.
E um em particular: o medo do desconhecido.
Afirma Henry Kissinger:
O que cada homem teme é o desconhecido. Quando essa situação ocorre, abdicamos voluntariamente dos nosso direitos individuais para garantir o bem-estar garantido pelo governo mundial
Sem um poder central, o que impediria aos homens de matar-se uns aos outros?
A segurança pessoal é a principal razão pela qual ao longo dos séculos os seres humanos aceitaram a autoridade.
É um dar para receber, os cidadãos oferecem algumas das suas liberdades em troca da "segurança".
Consideramos isto: numa sociedade sem um governo central, nem polícia, os homens realmente matariam os seus similares? O mundo ficaria transformado numa espécie de inferno?
Todos, alguns mais do que outros, tendemos a acreditar nisso, mas esta não pode ser apenas propaganda, espalhada pelos governantes para justificar o próprio domínio?
A ideia que os poderes, ao longo de milhares de anos, têm difundido é que os homens são cruéis animais selvagens quando deixados livres; e por isso é necessário um governo autoritário, que proteja os próprios súbditos (tal como Hobbes ensina).
A ideia básica é "o Homem não é capaz de ser livre."
Os resultados:
  • Aqueles que assumiram a tarefa de "domar" os homens (as "bestas selvagens") foram os maiores criminosos da história, os promotores de todas as guerras e de todos os genocídios.
  • Ao alimentar esta teoria e ao dar os piores exemplos, têm aproximado os homens a esse ideal (negativo) que eles próprios tinham criado.
Fomos vítimas da propaganda ao longo dos tempos?
É esta uma degeneração do sistema democrático?
Depende do ponto de vista. Na óptica da classe dominante a resposta é "não". a democracia esta a funcionar nos melhores dos modos.
Será este o inevitável desfecho de qualquer regime democrático?
Provavelmente sim. A democracia favorece os políticos, os burocratas, os conciliadores. Numa palavra: os medíocres. As pessoas com fortes convicções são muitas vezes vistos como fanáticos, extremistas, e a tendência é de uniformizar as várias componentes da sociedade democrática.
Mas permanece uma pergunta fundamental: pode existir uma alternativa?

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