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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

terça-feira, novembro 23, 2010

Obama, o conciliador “sórdido”



UA-Israel: propina que fede a conciliação vergonhosa [1]
“Conciliador é quem oferece carne de outro ao crocodilo, na esperança de ser devorado por último” (Winston Churchill)[2]
Em qualquer outro país, a propina que os EUA ofereceram a Israel, e a relutância de Israel para aceitá-la, mesmo que em troca de uma reles suspensão temporária do roubo de propriedade dos árabes, seriam considerados escandalosos. 3 bilhões de dólares em aviões bombardeiros, para ‘comprar’ uma suspensão temporária na colonização da Cisjordânia, e só por 90 dias? Não inclui Jerusalém Leste – portanto, adeus à última chance de capital palestina na cidade santa; – e, se Benjamin Netanyahu assim o desejar, logo depois poderá retomar furiosamente as construções em terra árabe. No mundo comum e são no qual cremos viver, só há um nome para o que Barack Obama ofereceu: ‘arreglo’, conciliação vergonhosa, expressão que nossos senhores e mestres sempre usam com desdém e repulsa.
Quem cede ante a injustiça que um povo comete contra outro é dito “conciliador” [2]. Quem espere a paz a qualquer preço, mesmo que ao preço de propina de 3 bilhões de dólares para o criminoso, é dito “conciliador”. Quem se acovarda ante o risco de defender a moralidade internacional contra a cobiça territorial de Israel é dito “conciliador”. Quando tantos de nós nos manifestamos contra invadir o Afeganistão, fomos execrados porque seríamos “conciliadores”. E também fomos execrados como “conciliadores”, quando nos opusemos à invasão do Iraque. Pois “conciliar” foi o que Obama tentou, nesse patético, inacreditável esforço, nessa súplica dirigida a Netanyahu, para que respeite a lei internacional só por 90 dias! Obama é conciliador, no sentido sórdido da palavra.
O fato de o Ocidente e as elites políticas e jornalísticas – e aí incluo o cada dia menos respeitável New York Times – aceitarem esse disparate como coisa normal, como se o disparate pudesse ser realmente apresentado como outro “passo” no “processo de paz”, para repor “nos trilhos” aquele delírio místico, é útil para avaliarmos a que ponto já avançou nossa loucura, em tudo que tenha a ver com o Oriente Médio.
É indício de o quanto os EUA (e, porque fracassamos na empreitada de condenar essa insanidade, também a Europa) deixaram agigantar-se por lá o medo que têm de Israel – e de o quanto Obama deixou que se agigantasse nele o medo que tem dos apoiadores de Israel no Congresso e no Senado.
3 bilhões de dólares por três meses é um bilhão por mês, para suspender temporariamente o roubo de terras palestinas. É meio bilhão de dólares por quinzena. 250 milhões por semana. 71.428.571 de dólares por dia, 2.976.190 por hora e 49.603 dólares por minuto. E, como se o pote de ouro não bastasse, Washington continuará a vetar toda e qualquer Resolução da ONU que critique Israel ou que admita a criação de algum estado palestino. Que bom negócio! Já teria valido a pena invadir qualquer país só para por a mão numa bolada dessas! Em seguida, encenava-se a retirada! Imaginem então receber a mesma bolada, só pelo cavalheiresco movimento de não construir novas colônias ilegais e só por 90 dias – com plena autorização para avançar simultaneamente as construções ilegais em Jerusalém!
A versão de Hillary Clinton para essa palhaçada seria engraçadíssima, não fosse trágica. Na pena afiada de Roger Cohen do NYT, LaClinton persuadiu-se de que a Palestina é “alcançável, inevitável e compatível com a segurança de Israel”. E quem teria persuadido Madame Hillary de tal coisa? Ora… Aconteceu numa viagem a “capital” Ramallah da pseudo-Palestina, ano passado. E ela viu as colônias exclusivas para judeus – “a brutalidade da coisa atingiu-a com violência” – mas ela achava que sua comitiva estivesse sendo escoltada por soldados israelenses “porque são tão profissionais”. E aí, ta-ta-ta-ti-ti-ti, acabou por descobrir que estava sob escolta de militares palestinos, “muito profissionais”. – Isso mudou completamente a visão de mundo de Madame!
Sem considerar o fato de que o exército israelense é ralé e que os palestinos são massa de miseráveis, esse incidente na “estrada de Ramallah” fez com que os apoiadores de Madame, nas palavras de Cohen, constatassem que já acontecera uma transição: “da psique de autopiedade e autoflagelação dos palestinos, sempre se apresentando como vítimas, para uma nova cultura pragmática de autoafirmação e de construção de instituições”. O ‘primeiro-ministro’ palestino Salam Fayyad, educado nos EUA e, portanto, gente confiável, “pôs o crescimento acima das lamentações, as estradas acima da agitação, e a segurança acima de tudo.”
Sob brutal ocupação por 43 anos, os palestinos roubados, reduzidos à miséria, com os primos da Cisjordânia que vivem sem casa há 62 anos, afinal pararam de lamentar-se e lamuriar-se e puseram-se repentinamente a cultuar a única coisa que realmente importa no mundo. Não é a justiça. Com certeza não, tampouco, é a democracia. Mas o único Deus que Madame espera que cristãos, judeus e muçulmanos cultuem: a segurança.
Agora, afinal, Israel está segura. Os palestinos uniram-se à humanidade em geral.
Com essa narrativa ginasiana, infantilizada, a mulher que, há 11 anos, dizia que Jerusalém seria “a eterna e indivisível capital de Israel” demonstra que o conflito Israel-Palestina atingiu o apogeu, o momento mais traiçoeiro e decisivo.
Se Netanyahu tiver algum juízo – falo de juízo sionista, expansionista – bastará esperar os 90 dias e passará pelos EUA de nariz erguido. Durante os três meses de “bom comportamento”, claro que os palestinos terão de segurar o rojão e manter-se sentados na cadeira das conversações “de paz” que decidirão as futuras fronteiras de Israel e “Palestina”. Mas, dado que Israel controla 62% da Cisjordânia, Fayyad e a turma dele ainda poderão disputar 10,9% da Palestina do Mandato.
E, ao preço de 827 dólares por segundo, melhor se forem rápidos. Serão. Deveríamos nos enforcar de vergonha. Mas ninguém se enforcará. Não se trata de gente. Tudo é falso. Não se trata de justiça. Só se trata de “segurança”. E de dinheiro. Muito, muito dinheiro. Adeus, Palestina.
Notas de Tradução
[1] No orig. appeasement. O dicionário Cambridge registra para appeasement: “conceder ou ceder a exigências do inimigo (nação, grupo, pessoa etc.) em esforço para conciliar, algumas vezes ao arrepio da justiça ou de outros princípios”.
[2] No orig. appeaser. A citação mais conhecida, em inglês, é frase atribuída a Churchill: “An appeaser is one who feeds a crocodile, hoping it will eat him last” [Conciliador é quem oferece carne de outro ao crocodilo, na esperança de ser devorado por último].
Robert Fisk: An American bribe that stinks of appeasement
Traduzido pelo Coletivo da Vila Vudu

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