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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

quinta-feira, novembro 10, 2011

“Epidemia grave de iranofobia nuclear”

Pepe Escobar
No auge de um frenesi de “vazamentos” na imprensa-empresa ocidental que chegou – literalmente – à histeria nuclear, os inspetores da Agência Internacional de Energia Atômica [ing. International Atomic Energy Agency (IAEA)] afinal divulgaram relatório no qual, essencialmente, dizem que Teerã, ainda no final do ano passado, tentava projetar uma bomba atômica que se adaptasse a uma ogiva de míssil.
Segundo o relatório, o Irã trabalhou “no desenvolvimento de projeto próprio de uma arma nuclear incluindo teste de componentes”.
Além da acusação de ter-se esforçado para redesenhar e miniaturizar uma arma nuclear paquistanesa, Teerã também é acusada de tentar montar operação clandestina para enriquecer urânio – o “projeto sal verde” [ing. green salt project] – que poderia ser usado “em programa clandestino de enriquecimento”.
Tudo isso levou a IAEA a expressar “sérias preocupações” sobre pesquisa e desenvolvimento “específicos para armas nucleares”.
O relatório vende a ideia de que, enquanto a IAEA tentava, ao longo de anos, monitorar os estoques iranianos declarados de minério de urânio e de urânio processado – hoje, 73,7 kg de urânio enriquecido a 20% em Natanz, mais 4.922 kg de urânio enriquecido a menos de 5% – Teerã, em segredo, tentava construir uma bomba atômica.
Inteligência fraca
A IAEA repete insistentes vezes que se baseia em inteligência “confiável” – mais de mil páginas de documentação – de mais de dez países, e que se ampara em oito anos de “provas”.
Mas a IAEA não tem meios independentes para confirmar a enorme massa de informação – e desinformação – que recebe mensalmente, a maior parte, das potências ocidentais. Mohammad El Baradei – que antecedeu o japonês Yukya Amano na presidência da Agência Internacional de Energia Atômica – disse isso várias vezes, claramente. E sempre contestou o que o que aparecia como “inteligência iraniana” – porque sempre soube que era informação extremamente “politizada”, atravessada por ondas de boatos e especulação.
Nenhuma surpresa, portanto, que o jornal iraniano Kayhan, ultraconservador, tenha perguntado se se trataria mesmo de relatório da IAEA, ou não passava de diktat ordenado pelos norte-americanos a um Amano fraco, facilmente pressionado.
O relatório nada traz que pudesse, nem de longe, abalar o mundo – só imagens de satélites e especulação de “diplomatas”, apresentadas ao mundo como se fossem “inteligência” irrefutável. Se parece etapa da construção da guerra contra o Iraque, é porque é isso, exatamente. Não passa de regurgitação de farsa já velha, de quatro anos passados, conhecida então como “o laptop da morte”. [1]
Cenário mais próximo da realidade – ainda que se acredite que haja um programa nuclear secreto no Irã, o que nunca foi provado – sugere fortemente que seria contraproducente, para Teerã, construir bomba atômica ou ogiva nuclear.
E, seja como for, o Corpo de Guardas Revolucionários Islâmicos [ing. Islamic Revolutionary Guards Corps (IRGC)] – que comanda todos os programas militares de alto nível – continua a ter a opção de construir, rápidos como raio, uma ogiva nuclear, a ser usada como arma de contenção no caso de terem absoluta certeza de que os EUA invadirão o Irã, ou lançarão alguma modalidade expandida da “Operação Choque e Pavor”. O indiscutível verdadeiro efeito de o Irã vir eventualmente a ter sua bomba atômica será acabar, de uma vez por todas, com a eterna ameaça de o país ser alvo de ataque americano. Quem tenha dúvidas sobre essa questão consulte, por favor, o dossiê Coreia do Norte.
O regime de Teerã pode ser impiedoso, mas eles não são amadores; construir uma bomba nuclear – secretamente ou à vista da IAEA – e mandar tudo pelos ares não os levará a lugar algum. Em termos geopolíticos, o regime – que já está às voltas com complexa e terrível disputa interna entre o Supremo Líder Ali Khamenei e o grupo do presidente Mahmud Ahmadinejad – ficaria completamente isolado.
A população iraniana já vive preocupada demais com inflação, desemprego, corrupção e o desejo de participar mais na vida política do país, para ser jogada no centro de uma disputa nuclear global. Há amplo consenso no Irã a favor do programa nuclear civil. Mas nada sugere que sequer alguma minoria aprovaria uma “bomba islâmica”.
Israel está blefando
O que arrepia os nervos não só de Israel, mas também dos poderosos interesses norte-americanos que, 32 anos depois, ainda não se conformaram com o fim do seu sentinela preferido na região (o Xá do Irã), é que o Irã os mantém em eterno suspense.
Muito previsivelmente, o governo do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu em Israel continuará a latir latidos ensurdecedores, ao mesmo tempo em que tenta todos os disfarces possíveis para trair os norte-americanos para sua armadilha.
O mesmo Netanyahu que nem Barack Obama nem Nicolas Sarkozy aguentam mais, é homem de estratégia obsessiva: obrigar Washington e alguns outros poucos, dos britânicos à Casa de Saud – o que nada tem a ver com alguma “comunidade internacional” – a aplicar pressão máxima contra Teerã. Ou Israel atacará.
É perfeito absurdo, porque Israel não pode atacar nem cachorrinho de madame. Todo o armamento crucial para Israel é norte-americano. E depende de autorização para cruzar o espaço aéreo iraquiano ou saudita. Nada faz sem luz verde de Washington, de A a Z. Pode-se acusar o governo Obama de várias coisas, não de terem tendências ao suicídio.
Só aquelas não-entidades no Congresso dos EUA – desprezadas pela ampla maioria dos norte-americanos, segundo todas as pesquisas – poderiam ainda acreditar nas marciais ordens de marcha avante que recebem de Netanyahu, via o poderoso lobby do AIPAC (American Israel Public Affairs Committee).
Resta afinal, só, então, o caminho de mais e mais sanções. Quatro rodadas de duras sanções do Conselho de Segurança da ONU já atingem as importações e os setores bancário e financeiro do Irã. Mas é só. Fim da linha.
O relatório da IAEA não convenceu a Rússia, como os russos já disseram claramente; tampouco impressionou a China. A IAEA, simplesmente, não encontrou prova alguma que realmente a autorizasse a acusar o Irã de manter programa ativo para construir bombas atômicas.
Assim sendo, esqueçam a possibilidade de Rússia e China aceitarem mais uma rodada de sanções que os EUA imponham na ONU, e que poderia ser, essa sim, literalmente, nuclear: boicote de facto, que paralise as vendas de gás e petróleo do Irã.
Só alguma trupe de palhaços assumiria que a China votaria contra os interesses de sua própria segurança nacional no Conselho de Segurança da ONU. O Irã é o terceiro maior fornecedor de petróleo para a China, depois de Arábia Saudita e Angola. A China importa cerca de 650 mil barris de petróleo por dia, do Irã – 50% a mais, em comparação ao ano passado. É mais de 25% do total das exportações de petróleo do Irã.
O próprio governo Obama já teve de admitir publicamente que um boicote é inimaginável: tiraria da economia global já deprimida nada menos que 2,4 milhões de barris de petróleo por dia. O barril chegaria a $300, $400.
Teerã tem – e continuará a encontrá-los – meios para contornar as sanções financeiras. A Índia pagou o que tinha a pagar ao Irã, nos negócios de importação, através de um banco turco. E Teerã também já está usando um banco russo.
O que também prova que o mantra de Israel, segundo o qual a “comunidade internacional” teria isolado o Irã não passa de monumental blefe. Atores chaves, como os BRICS - Rússia, China e Índia - mantêm relações comerciais muito próximas com o Irã.
E, sobretudo: em pleno surto de histeria iranofóbica, a Organização de Cooperação de Xangai [ing. Shanghai Cooperation Organization (SCO)] – China, Rússia e os quatro “-...stões” da Ásia Central – iniciou sua reunião de cúpula em São Petersburgo. O Irã lá está – como observador – representado pelo ministro de Relações Exteriores Ali Akbar Salehi. Mais dia, menos dia, o Irã será admitido como membro pleno.
Se, ainda antes de o Irã tornar-se membro da Organização de Cooperação de Xangai, China e Rússia já veem qualquer ataque contra o Irã como ataque contra esses próprios países (além de ataque, também, contra a ideia da integração de toda a energia da Ásia), será realmente muito interessante observar o que Israel fará, tentando convencer os EUA a atacarem... a Ásia! 
*comtextolivre

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