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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

sexta-feira, novembro 04, 2011

O IMPERDOAVÉL TERROR DA TORTURA.


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– Me cago en Diiios...!!!

Ninguém conhece o nome do jovem estudante que pronunciou a blasfêmia. Nem mesmo quem ouviu a frase, o jornalista uruguaio Rodolfo Porley Corbo. Ambos estavam lado a lado, mas encapuzados, pendurados como gado numa cela do Comando Geral do Exército, em Montevidéu, num dia qualquer de 1977. O que impressionou o jornalista de 31 anos não foi o desabafo angustiado do jovem, mas a indignada reação do militar que comandava a tortura:
https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiSYTyw-vn6JK02N-OTIOuJ33VfG_etQ6gz4UsUC_1o7rJNaSfV_aKpCG1KpVV3PLdLSPsf-4VZZoKRcaqhpsqPHPckl8AtMOlP2M3wWQP6GRM5ckb1RuqpNg9Bzz6v-4m0x2wqk5cHeyw/s400/Tortura.jpg 
A cena é talvez a lembrança mais marcante e surreal dos três anos e meio que Porley passou encarcerado em quatro estabelecimentos militares do país, somando 325 dias de prisão incomunicável, 149 deles vendado, paralisado pela dor, destroçado pela violência. Ao desembarcar na Suécia como asilado, em 1979, o jornalista foi recebido como “um embaixador perigoso dos vivos e dos mortos no cárcere”. Sua primeira entrevista em Estocolmo escancarou o perigo:
– En mi país gobierna el poder de la locura ciega. Son los brutos, asesinos y verdugos quienes gobiernan. Las cárceles de mi país están llenas. Lo que vemos ahora es la deformación de la propia vida.http://tecituras.files.wordpress.com/2010/09/inicio1.jpg
Não era  Num drama particular do país que tinha o melhor padrão de prosperidade econômica da região, o maior nível de educação do continente. Era uma tragédia coletiva, transnacional, das ditaduras que em apenas uma ou duas décadas rebaixaram, em absurda ordem unida, os cinco países do Cone Sul na segunda metade do Século 20. Eram as nações de maior expressão política e força econômica da região, onde hoje vivem mais de 250 milhões de pessoas, duas vezes e meia a população dos outros oito países e três territórios da América do Sul. .http://i56.tinypic.com/2hxa7at.jpg.sucessivas de governos militares afogaram a democracia e a razão durante quase um século de arbítrio. Foram exatos 92 anos somados de ditaduras que eram de um e eram de todos: Paraguai (1954-89), Brasil (1964-85), Chile (1973-90), Uruguai (1973-85) e Argentina (1976-83). Na quimera do combate ao pensamento, as ditaduras caçaram o suspeito de sempre: a palavra – expressão das vozes, território da cultura, pátria da liberdade. A palavra é sempre perigosa, porque alarga as fronteiras, os idiomas, as ideias, hasta las ideas ajenas. .A palavra ensina, mostra, revela, e por isso precisa ser escondida, aprisionada, silenciada. Em nome de sua santa cruzada contra a subversão, militares do Cone Sul conseguiram contrariar a lógica, inverter o pensamento, confundir a razão, subverter a palavra. A força da palavra, de repente, ficou encarcerada pela palavra da força. A força das ditaduras no Chile e no Uruguai conseguiu deformar pelo absurdo o significado de dois ícones da civilização: dignidade e liberdade. Dignidad era o nome de uma colônia agrícola, 300 km ao sul de Santiago do Chile,http://t2.gstatic.com/images?q=tbn:ANd9GcRDhOzP5jNwSaEa5ZAmE_BiGDVYd-plXJ6FIl25FFkJIbaCwtqJ45zk-g fundada nos anos 1960 por um ex-enfermeiro da Luftwaffe nazista, acusado de abuso sexual contra crianças. Ali, o Exército de Pinochet fabricava gás sarin e a repressão treinava agentes em técnicas de interrogatório e tortura. . 
Libertad era o maior presídio masculino do Uruguai, 50 km a oeste de Montevidéu, um depósito de gente onde mofavam 600 presos políticos espremidos num prédio lúgubre de cinco andares povoados por gritos, medo, sofrimento, dor. A ditadura daqueles tempos conseguiu a proeza de transformar Dignidad em sinônimo de tortura no Chile, conseguiu a façanha de tornar Libertad um endereço de prisão no Uruguai. Naqueles tempos, naqueles lugares, Dignidad e Libertad machucavam a carne, sangravam a alma. A ditadura, só a ditadura, tem a força para deturpar a palavra, para inverter o sentido moral das coisas, para converter o nexo das ideias no seu avesso. Na quimera do combate ao pensamento, as ditaduras caçaram o suspeito de sempre: a palavra – expressão das vozes, território da cultura, pátria da liberdade. A palavra é sempre perigosa, porque alarga as fronteiras, os idiomas, as ideias, hasta las ideas ajenas. A palavra ensina, mostra, revela, e por isso precisa ser escondida, aprisionada, silenciada. .nome de sua santa cruzada contra a subversão, militares do Cone Sul conseguiram contrariar a lógica, inverter o pensamento, confundir a razão, subverter a palavra. A força da palavra, de repente, ficou encarcerada pela palavra da força. A força das ditaduras no Chile e no Uruguai conseguiu deformar pelo absurdo o significado de dois ícones da civilização: dignidade e liberdadehttp://blog.clickgratis.com.br/uploads/c/comandodebusca/295289.jpg 
O DOI-CODI da rua Tutóia foi criado e administrado por um major de Exército oculto pelo codinome de “major Tibiriçá”, o nome mais temido da repressão militar brasileira. Nos 40 meses em que comandou aquele lugar, símbolo mais sangrento dos anos de chumbo do Governo Médici, o então major Carlos Alberto Brilhante Ustra amargou 502 denúncias de tortura, uma a cada 60 horas, e lamentou 40 mortes de presos políticos, uma por mês. Apesar disso, hoje aposentado e refém de seu passado, o coronel da reserva Ustra continua livre, solto, impune, como tantos outros covardes que de tão covardes, sequer tiveram coragem de se atolar nessa lama de sangue até o topete, o que facilmente os diferenciaria dos homens de bem que queriam demonstrar ser. Do Oiapoque ao Chui e do Acre à Paraíba, ainda há torturadores disfarçados de poetas, contando estórias de Trancoso para os netos.

Trecho da palestra de encerramento do XIV Congresso Internacional de Humanidades realizado na Universidade de Brasília (19-21/10/2011), proferida pelo jornalista Luiz Cláudio Cunha, publicada na revista Intercâmbio, da UnB.



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