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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

sexta-feira, novembro 11, 2011

A ousadia dos bancos e a refundação do Estado


Uma reforma política que se limite aos ritos eleitorais e à organização partidária, e não atinja os alicerces dos estados contemporâneos — uma vez que o tema não se limita às nossas fronteiras — será inútil. O problema não é o da estrutura formal do Estado; é o de sua legitimidade.
Mauro Santayana
A convite do Instituto dos Advogados de Minas Gerais, participei, ontem, em Belo Horizonte, de um debate em torno da reforma política, que vem sendo anunciada e postergada no Congresso Nacional. O tema, durante a discussão, saltou do círculo de giz em que está contido, para ampliar-se à crise do Estado contemporâneo, ocupado, na maioria dos países, pelos representantes do poder econômico.
Enfim, apesar da resistência política, aqui e ali, e da indignação dos povos, nas manifestações contra a ditadura dos bancos, o Estado perdeu a sua natureza histórica, de integrar-se nas sociedades nacionais. Separou-se, para se opor às comunidades, a serviço do novo e diabólico fundamentalismo mercantil.
Uma reforma política que se limite aos ritos eleitorais e à organização partidária, e não atinja os alicerces dos estados contemporâneos — uma vez que o tema não se limita às nossas fronteiras — será inútil. O problema não é o da estrutura formal do Estado; é o de sua legitimidade.
Os partidos são aglomerados de interesses corporativos, que não atraem a participação da cidadania
O instituto da representação, sobretudo na formação dos parlamentos, se encontra corrompido pela ação, a cada dia mais ousada, dos interesses econômicos. Os partidos não reúnem ideias — apesar de sobrevirem ainda, em suas fileiras, homens públicos de bem, mas acoitam servidores das corporações, quase todas econômicas e financeiras, mesmo que se dissimulem em algumas seitas religiosas.
A separação dos poderes, regra constitucional básica, para o bom funcionamento republicano, se tornou uma farsa em algumas comunidades políticas, como é o nosso caso. Os partidos são aglomerados de interesses corporativos, que não atraem a participação da cidadania.
Nos períodos de campanha eleitoral, o proselitismo doutrinário e ideológico, que reunia os cidadãos no passado, é substituído pela técnica da propaganda, e as alianças se formam em busca do maior tempo de exposição nos meios eletrônicos de comunicação. Em razão disso, o desinteresse dos cidadãos abre caminho para a erosão do Estado, que deixa de ser a alma das sociedades nacionais.
As velhas regras da política internacional são escandalosamente violadas, e os governos se colocam a serviço dos reais donos do mundo. Alguns poucos chefes de famílias poderosas, ao controlar as finanças mundiais, controlam as matérias-primas e a energia. Grandes empresas industriais se assenhoreiam das pesquisas científicas e tecnológicas, subtraindo seus resultados do domínio dos inventores, mediante contratos que lhes transferem os direitos de patente.
As relações diplomáticas sempre foram formalmente de governo a governo, no diálogo entre poderes soberanos, mesmo que as embaixadas servissem e sirvam para a avaliação da força dos estados, mediante os métodos clandestinos de espionagem. Hoje as embaixadas se tornaram instrumentos desembuçados de interferência nos assuntos internos dos estados, que perdem, assim, sua soberania.
A nova subsecretária de Estado dos Estados Unidos para a América Latina, Roberta Jakobson, ao ser sabatinada no Senado, disse, textualmente, que “em alguns países, trabalharemos mais com a sociedade civil do que com os governos, conforme a circunstância”. E, a pedido do democrata Robert Menendez, listou, entre esses países, a Venezuela, a Bolívia, o Equador, a Nicarágua, Belize e, “até certo ponto”, a Argentina. Ela informou, ainda, que deverá “monitorar” com preocupação os relatos de observadores das eleições na Nicarágua, no dia 6, e estar atenta para “garantir que os venezuelanos possam expressar seu desejo político” no pleito de 2012, que é visto pelo Comitê de Relações Internacionais do Senado como “o evento crucial da década na região”.
Não há confissão mais aberta de ingerência nos assuntos internos de nossos países e da violação dos princípios da autodeterminação dos povos. Os governos regionais devem manter-se vigilantes. Sempre que essa intromissão se tornar evidente, têm o dever de declarar os diplomatas envolvidos personae non gratae, e expulsá-los sumariamente de seus territórios.
A crise europeia faz lembrar o desespero dos jogadores de pôquer que, a cada rodada perdida, aumentam a aposta, na esperança de um milagre. Ainda agora, se anuncia que Berlusconi será substituído, na chefia do governo italiano, pelo economista Mário Monti. Mário Monti é um dos nomes citados no recente livro do jornalista francês, Marc Roche, La banque: Comment Goldman Sachs dirige le monde.
Monti, ex-comissário europeu para assuntos de concorrência, que advogou o esquartejamento de todas as empresas estatais restantes e sua privatização imediata, é conselheiro permanente do Goldman Sachs para o continente europeu. Ele não representará, na chefia do governo da Itália, nenhum partido político, e muito menos o povo italiano. Irá reportar-se ao sistema financeiro internacional, que continua a se mover em torno de sua peça mais poderosa, o Goldman Sachs.
A única esperança de que os Estados se libertem da ditadura dos interesses do “mercado” está na ação dos cidadãos do mundo
A única esperança de que os Estados se libertem da ditadura dos interesses do “mercado” está na ação dos cidadãos do mundo, que já demonstram sua indignação em quase todas as grandes cidades de todos os continentes.
Já não se trata de uma utopia, mas de projeto realizável, se, ao contrapor-se à globalização da economia, os povos conseguirem unir-se para a restauração dos estados nacionais.

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