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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

domingo, novembro 02, 2014

A sentença que libertou Pizzolato condena a Justiça brasileira


A sentença que libertou Henrique Pizzolato na Itália condenou no mesmo movimento todo o processo pelo qual os réus do chamado “mensalão” foram condenados no Brasil pelo Supremo Tribunal Federal. Não convence a justificativa supostamente alegada pelo tribunal italiano de que as penitenciárias no Brasil apresentam condições de vida subumanas. Também não convence a cobertura que o ministro Marco Aurélio deu a essa justificativa, alegando, também ele, as péssimas condições prisionais brasileiras. Não somos idiotas. A verdadeira  justificativa para a libertação de Pizzolato é que não havia provas para condená-lo no Brasil.
Um protocolo convencional entre os órgãos de Justiça italiano e brasileiro diz que não se pode julgar, na Itália, o que foi julgado no Brasil, em termos substantivos. Mas existe, também, entre a Justiça italiana e a brasileira uma controvérsia pendente sobre o caso rumoroso de Cesare Battisti, condenado à revelia por assassinato na Itália na fase da guerrilha urbana, mas cuja extradição o Brasil recusou por atender a suas alegações de inocência e lhe dando o status de refugiado político. Tudo isso poderia jogar a favor de Pizzolato, na Itália, como efeito de uma espécie de retaliação. Entretanto, a Justiça italiana deu ao réu a OPORTUNIDADE de defender-se, e ele provavelmente falou muito mais do que criticar o sistema prisional brasileiro.
De fato, quando foi libertado, Pizzolato não se referiu a condições carcerárias brasileiras. Ao contrário, perante várias câmaras de televisão, disse simplesmente que é inocente das acusações que lhe foram feitas no Brasil. Milhares de páginas haviam sido enviadas à Justiça brasileira pelo Banco do Brasil para justificar as operações que conduziu, provando cabalmente sua inocência. Não há DINHEIRO do Banco do Brasil no esquema do chamado “mensalão”. Sua elevação à condição de réu atendeu essencialmente ao propósito do procurador da República de construir uma cadeia de relações na imaginária narrativa do que teria sido o crime. Joaquim Barbosa deu cobertura raivosa a essa narrativa, e a maioria dos demais juízos, intimidados pela fúria do relator do caso, o seguiu.
Talvez, pela autoridade moral que o Supremo representa para grande parte da população seja difícil admitir que a condenação de tantos inocentes, em julgamento televisivo, possa ter ocorrido sem reação da mídia e do público. Acontece que a mídia brasileira comporta-se como meio de acusação, sem qualquer sentido de imparcialidade. Com episódicas exceções, como foi o caso da “Folha” em relação às acusações contra Dirceu (verhttp://www1.folha.uol.com.br/poder/2013/09/1345627-dirceu-foi-condenado-sem-provas-diz-ives-gandra.shtml ), ela toma o partido do acusador pois isso provoca maior sensação. O público, obviamente, acaba sendo tangido pela mídia como gado em razão das condições nebulosas que ela cria ignorando o secular princípio jurídico do in dubio pro reo. Do ponto de vista jurídico, recuamos a um estado anterior ao século XVIII, quando o marquês de Beccaria pontificou que não há pena sem crime, nem crime sem cominação legal.
A condenação de Dirceu, mais ainda do que a de Pizzolato, foi um estupro jurídico, como atesta a entrevista acima de um jurista insuspeito de simpatia com o PT, Yves Gandra. Se levado a um tribunal italiano, o caso Dirceu teria idêntico desfecho ao de Pizzolato: para salvar a cara da Justiça brasileira, ele diria que libertaria Dirceu por causa das péssimas condições carcerárias no Brasil. Como isso é uma meia verdade, livra a cara de uma sentença mais inconveniente, que entrasse no mérito da condenação brasileira. Entretanto, alguém argumentou muito bem que as condições da Papuda são razoáveis. Dirceu e Genoíno passaram por lá sem apresentar grandes reclamações.
Pizzolato é o testemunho vivo de que o STF tornou-se uma corte exclusivamente política, capaz de condenar pessoas sem prova apenas para benefício de uma corrente partidária. Isso em ocorrido à maioria dos sistemas judiciais na história, porém nunca fora de um ambiente revolucionário. O STF tentou extorquir o mandato político do PT pela via pacífica dos pronunciamentos judiciais, com evidente parcialidade, os quais se repetiram agora, nas vésperas das eleições, mediante o conluio de um juiz federal do Paraná com a revista “Veja”. (A propósito, querem tirar o juiz do processo; é um erro. Trata-se de um jogo da “Veja” para distrair a opinião pública da questão central, que é a validade dos depoimentos “premiados”.)
No célebre caso Dreyfus, um grande escritor, Zola, representou a consciência moral da França ao escrever “J´accuse”, um livro demolidor contra o sistema judicial francês que condenou um oficial do Exército sem prova por suposta traição. Também nesse caso a opinião pública do país havia sido envenenada no limite contra o acusado inocente, ademais judeu. Aqui, exceto por um pequeno grupo de jornalistas e juristas – Luis Nassif, Paulo Henrique Amorim, Jânio de  Freitas, Fábio Comparato, e eu próprio (não me lembro de todos) -, a esmagadora maioria da mídia tomou o partido dos Torquemadas, na maior demonstração de uma imprensa doente que ignora suas raízes imparciais e toma o partido do mais forte.
Felizmente para testemunho da história, Pizzolato tem dupla nacionalidade e ganhou a estrada antes que o poluído sistema judiciário brasileiro o apanhasse. Não fosse sua inteligente esperteza, presumindo o que lhe teria acontecido no Brasil em termos de destruição de sua reputação e de parte de sua vida, não teríamos a singular OPORTUNIDADE de ver a Justiça italiana, berço romano da nossa, passar uma descompostura pública no STF. Há dois mil anos, um inocente foi levado à presença de Pilatos, o procurador romano na Galiléia. “Ecce homo”, lhe disseram. “Eu não vejo culpa nesse homem”, reagiu Pilatos. O inocente não teve sorte porque Pilatos, em lugar de decidir pela imediata soltura, mandou que fosse cumprida sentença sabidamente injusta. Os tribunais romanos, desde então, melhoraram muito.

*Economista, doutor pela Coppe-URJR, professor de Economia Internacional na UEPB. 
*CGN

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