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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

quinta-feira, março 17, 2011

Fazer andar outra vez o fluxo da história"

Ahmet Davutoglu é ministro das Relações Exteriores da Turquia


Ministro Ahmet Davutoglu, presidente Lula e ministro Celso Amorim, 14-6-2010
Imagem em http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Davutoglu_with_Lula_and_Amorim_1.JPG
A onda de revoluções no mundo árabe foi espontânea. Mas, ao mesmo tempo, tinha de acontecer. As revoluções eram necessárias para restaurar o fluxo natural da história. Em nossa região – Ásia ocidental e sul do Mediterrâneo – houve duas anormalidades no século passado: primeiro, o colonialismo nos anos 1930s, 40s e  50s que dividiu a região em entidades coloniais, e quebrou os vínculos naturais entre povos e comunidades. Por exemplo, a Síria foi colônia francesa, o Iraque, colônia britânica. Assim, romperam-se laços econômicos e históricos entre Damasco e Bagdá.

A segunda anormalidade foi a Guerra Fria, que somou mais uma divisão: países que viveram juntos durante séculos tornaram-se inimigos, como a Turquia e a Síria. Estávamos na OTAN; a Síria era pró-soviéticos. Nossa fronteira deixou de ser fronteira entre dois estados-nação e tornou-se fronteira entre dois blocos. O Iêmen também foi dividido.

Agora, é tempo de fazer andar outra vez o fluxo da história. Vejo essas revoluções como processo adiado que deveria ter acontecido nos anos 80s e 90s como na Europa Oriental. Não aconteceu porque houve quem dissesse que as sociedades árabes não mereceriam a democracia e careceriam de regimes autoritários para preservar o status quo e impedir o avanço do radicalismo islâmico. Países e governantes que se orgulhavam de sua democracia privada, insistiram em que qualquer democracia no Oriente Médio ameaçaria a segurança de nossa região.

Agora, todos dizemos juntos: não. Um turco comum, um árabe comum, um tunisiano comum pode mudar a história. Acreditamos que a democracia é boa e que nossos povos merecem democracia. Esse é um fluxo histórico natural. Cabe a todos respeitar esse desejo do povo.

Se fracassarmos e não compreendermos que é preciso reconectar as sociedades, comunidades, tribos e etnias em nossa região, perderemos a potência desse momento da história. Nosso futuro está em nosso senso de um destino comum. Todos, na região, temos um destino comum.

Mas, se essa transformação é um fluxo histórico natural, como devemos responder a ele? Em primeiro lugar, precisamos de um plano de emergência para salvar vidas, para evitar o desastre. Segundo, temos de normalizar a vida. Por fim, precisamos reconstruir e restaurar os sistemas políticos em nossa região, exatamente como temos de reconstruir as casas depois de um tsunami.

Para empreender essa restauração, precisamos de um plano, uma visão. E precisamos de autoconfiança. Autoconfiança para dizer: essa região é nossa; nós a reconstruiremos. Para que tudo isso aconteça, temos de compreender claramente os princípios básicos que temos de seguir.

“Respeitar as massas”

Primeiro, temos de confiar nas massas em nossa região. As massas clamam por respeito e dignidade. Hoje, esse é o conceito crítico: dignidade. Fomos insultados durante décadas. Fomos humilhados durante décadas. Agora, queremos dignidade. Isso, precisamente, o povo jovem exigiu, na praça Tahrir. Depois de ouvi-los, ganhei novo otimismo para pensar o futuro. Aquela geração é o futuro do Egito. Eles sabem o que querem. Há nova potência em nossa região, e essa potência deve ser respeitada.

O segundo princípio é que mudança e transformação são necessidade, não escolha. Se a história flui e se resiste a ela, sempre se perde. Nenhum líder, por carismático que seja, consegue deter o fluxo da história. Vivemos tempos de mudança. Que ninguém se deixe prender à lógica da Guerra Fria. Que ninguém diga que só regimes específicos, ou homens, ou alguém, pode garantir a estabilidade de um país. A única garantia de estabilidade que há é o povo.

Em terceiro lugar, a mudança tem de ser pacífica – segurança e liberdade não são excludentes entre si: precisamos das duas. Nessa região, estamos fartos de guerras civis e tensões. Todos temos de agir sabiamente, sem criar violência nem atritos entre irmãos e irmãs. Temos de tornar possível a mudança com o mesmo espírito de destino comum.

Em quarto, precisamos de transparência, de meios para cobrar do poder e prestar ao povo, contas dos atos do poder; precisamos respeitar os direitos humanos e o estado de direito; e precisamos preservar nossas instituições sociais e do estado. Revolução não significa destruição. Outra vez, o Egito é bom exemplo: o exército agiu prudentemente ao não confrontar o povo. Mas, se não há divisão clara entre o papel civil e o papel militar das instituições, surgem problemas. Impressionou-me a decisão do marechal-de-campo Tantawi, de passar o poder à autoridade civil o mais rapidamente possível.

Por fim, é preciso proteger a integridade territorial de nossos países e da região. O status legal e a integridade territorial dos estados, inclusive da Líbia e do Iêmen têm de ser protegidos. Já conhecemos excesso de divisões, separações demais, com o colonialismo e a Guerra Fria.

Esse processo tem de ser conduzido pelo povo de cada país, mas deve haver propriedade regional. Essa é nossa região. Intelectuais, formadores de opinião, políticos dessa região devem reunir-se com mais frequência, para tomar decisões sobre o que deve ser feito em nossa região, no futuro. Estamos ligados uns aos outros, por séculos e séculos que virão.

O que aconteça no Egito, na Líbia, no Iêmen, no Iraque ou no Líbano nos afeta todos. Portanto, temos de mostrar solidariedade aos povos em todos esses países. São indispensáveis mais fóruns regionais, em que se reúnam políticos, líderes em geral, intelectuais, a mídia.

Quase sempre, o “Oriente Médio” – expressão orientalista – é considerado sinônimo de tensões, conflitos e subdesenvolvimento. Mas nossa região foi centro de civilização ao longo de milênios, que nos deram fortes tradições de ordem política na qual florescem ambientes multiculturais. Além dessa herança civilizacional e política, temos recursos econômicos suficientes para fazer de nossa região um centro de gravidade global.

É hora de proceder a reavaliações históricas, para transformar nossa região em região de estabilidade, liberdade, prosperidade, renascimento cultural e co-existência. Nessa nova ordem regional, tem de haver menos violência e menos barreiras entre os países, sociedades, seitas. Mas tem de haver mais interdependência econômica, mais diálogo político e maior interação cultural.

Hoje, o mundo busca uma nova ordem global. Depois da crise financeira internacional, temos de desenvolver uma ordem econômica baseada na justiça; e uma ordem social baseada no respeito e na dignidade. Essa região – nossa região – pode contribuir para a formação dessa nova ordem emergente: nova ordem global, política, econômica e cultural.

Nossa responsabilidade é abrir caminho para essa nova geração e construir uma nova região ao longo da próxima década. O povo dirá que nova região deseja ter. 
*Beatrice

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