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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

terça-feira, março 08, 2011

A Igreja precisa de uma nova reforma protestante


Por Levon Nascimento


A igreja necessita hoje de uma reforma protestante
Por Eduardo Hoonaert, padre casado, belga, com mais de 5O anos de Brasil, historiador e teólogo, mais de 20 livros publicados. Mora em Salvador. Dedica-se agora ao estudo das origens do cristianismo. Agência Adital
A igreja católica hoje tem necessidade urgente de ‘protestantes’, ou seja, de pessoas que - na linha de personalidades dos séculos XV-XVI como Hus, Wycliff, Lutero, Zwingli, Calvino, Karlstadt, Münzer, Erasmo e Morus - protestam contra a condução da igreja católica pelos seus mais altos representantes em Roma. Está na hora de se resgatar o genuíno espírito protestante, exemplarmente representado por Martinho Lutero. Teço aqui algumas considerações em torno de seu trabalho de reforma da igreja católica em seu tempo.
1. De início, Lutero pensava em aproveitar de uma viagem a Roma para alertar o papa diante dos abusos cometidos por pregadores de indulgências. Portanto, sua primeira intenção não era formar uma igreja separada de Roma, mas reformar a igreja existente. Mas ele se decepcionou. Os burocratas do Vaticano não queriam ouvir falar de eliminar ou mesmo diminuir os lucros provenientes da venda de indulgências. Lutero resolveu então passar por cima de Roma e ir direto ao cristianismo bíblico.
2. Ele se mete imediatamente a trabalhar. Ao longo de 14 anos empreende a tarefa gigantesca de traduzir a bíblia em língua alemã. Refugiado no castelo de um príncipe amigo, ele manda de vez em quando alguém à cidade a fim de anotar, na feira, palavras utilizadas por vendedores de produtos agrícolas e que, em sua opinião, são adequadas a traduzir em alemão as palavras que ele encontra em hebraico, grego ou latim nos textos bíblicos. Pois Deus tem de falar a língua do povo. A paixão de Lutero pela tradução da bíblia em língua alemã faz dele um dos principais formadores dessa língua, tal qual ainda é falada hoje. Esse árduo trabalho intelectual é a melhor resposta de Lutero aos que dizem que ele é sonhador, idealista, e que seu projeto não tem futuro. É como se ele argumentasse: ‘Eu não sonho, trabalho. Faço o que posso para mudar as coisas, por mínima que seja minha contribuição’. Eis o que ele entende por ‘viver da fé’ (o justo vive da fé). Como Abraão, o primeiro homem (pelo menos na tradição bíblica) a viver da fé, Lutero vive da convicção de que as coisas podem mudar.
3. O filósofo Ernst Bloch escreveu um livro (‘Thomas Münzer, um teólogo da revolução’, 1921) em que ele critica Lutero por não ter participado da guerra dos camponeses. Em sua opinião, foi uma lamentável omissão. Mas há uma frente de combate em que Lutero se meteu e que talvez escape à atenção do filósofo materialista: o combate em terreno religioso. Lutero combate de forma destemida uma opressão menos patente que a opressão econômica, mas que penetra mais fundo na alma humana, perpetuando-se por sucessivas gerações. É o combate contra o que o historiador Jean Delumeau chama de ‘pastoral do medo’. O clero introduz na alma do povo o medo do diabo, do inferno, da condenação eterna, do pecado, e assim conquista respeito e autoridade. Fortalecido pela leitura do evangelho, Lutero levanta-se contra essa prática perversa em seu texto ‘Do cativeiro babilônico da igreja’ (publicado no Brasil pela editora sinodal, São Leopoldo, 1982). No entender das pessoas comuns, a vida cristã consiste em assistir à missa e às novenas, rezar muito, mandar celebrar missas pelos defuntos, participar de romarias, tudo isso para salvar sua alma e as almas de entes queridos. Lutero escreve: são exatamente essas práticas, criadas e encorajadas pela igreja, que mantêm o povo num cativeiro ‘babilônico’, do qual Jesus vem nos libertar. O mesmo raciocínio está na base do opúsculo ‘Da liberdade do homem cristão’ (igualmente publicado pela editora sinodal de São Leopoldo). O homem cristão liberta-se de cultos e práticas devocionais que não levam a nada e passa corajosamente a ‘viver da fé’, ou seja, a fazer algo em benefício dos outros, aqui e agora.
4. Eis o espírito de Lutero. O que importa hoje é captá-lo e traduzi-lo em práticas adaptadas ao nosso tempo, sejam elas de cunho religioso ou não. Lutero pertence à humanidade, não pode ser privatizado por alguma igreja ou confissão religiosa. Sempre existe uma diferença entre a inspiração de um inovador e o modo como seus seguidores ou admiradores conseguem captar e viver sua mensagem. Há diferença entre Lutero e luteranismo assim como há diferença entre Calvino e calvinismo, Agostinho e agostianismo, Marx e marxismo e, principalmente, entre Cristo e cristianismo. A constatação já foi feita por Marcião, um mestre cristão particularmente lúcido do século II, que dizia que nem todos os apóstolos conseguiram captar o espírito de Jesus. Não basta conviver com alguém para captar sua inspiração profunda. É possível que pessoas fisicamente distantes de alguém particularmente iluminado captem melhor seu espírito que os que convivem com ele. É o que aconteceu com os familiares de Jesus e os vizinhos da aldeia de Nazaré: não captaram seu espírito, como testemunha o evangelho de Marcos.
5. A cena do século XVI repete-se atualmente em Roma. Os(as) que trabalham pela reforma da igreja católica são considerados(as) ‘personae non gratae’. Reina um espírito de prepotência, fechamento e mesmo cinismo, como afirmou recentemente o escritor Saramago. Todos e todas que ousam apresentar uma sugestão que não é do agrado das autoridades do Vaticano sentem isso na pele. Como nos tempos de Lutero, necessitamos atualmente de uma reforma protestante a sacudir a igreja católica pela força do espírito evangélico. Temos de protestar, fazer ouvir nossa discordância dos desmandos praticados pelo papa e pelas autoridades do Vaticano.
*nassif

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