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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

sábado, setembro 01, 2012

Se estivéssemos em um país que não teme seu passado...

 

do Diário Guache

Cristóvão Feil
O choque e a ironia
"A cada fisgada elétrica vai-se tecendo a argumentação virulenta cuja eficácia faz desabar as ilusões que ainda nutríamos sobre a realidade da vida nacional."
Desta forma, Luiz Roberto Salinas Fortes [foto acima], professor de filosofia da Universidade de São Paulo, nos descreve a verdadeira dor provocada pela tortura em um pau-de-arara. A dor de descobrir que "o abismo, na realidade, é imenso entre a literatura e o choque, entre o argumento e a porrada".
Isso talvez nos explique porque boa parte daqueles que descobrem a vulnerabilidade nua da tortura só suportem o silêncio. Porque um choque elétrico em um pau-de-arara não se escreve. A escrita ainda pressupõe alguma demanda de partilha, mas um choque não se partilha. Ele apenas faz tudo desabar, a começar pela ilusão de que os conflitos da vida nacional possam se resolver em alguma forma de diálogo socrático.
Aí está talvez a grandeza de "Retrato Calado", livro reeditado agora, no qual Salinas Fortes descreve suas prisões e torturas na ditadura militar e, assim, elabora o mais profundo dos traumas, este que nos leva à "cena primitiva": o trauma de descobrir um país sem argumentos. País que periodicamente entra na via larga da porrada e sai sempre com as mãos ilesas.
Lá onde todos preferem se calar, Salinas Fortes resolveu escrever. Uma escrita que, no entanto, não espera "contar" o que não se conta.
Como se a crueza de um relato em primeira pessoa pudesse fazer os choques serem sentidos pelo leitor, obrigando-o a pensar de outra forma.
Alguém como Salinas não tem mais essas ilusões. Por isso, ele usa a única coisa que até hoje restou a esse país quando seus traumas se confrontam com a fraqueza das palavras.
De maneira monstruosa.
Salinas usa a ironia melancólica para fornecer o melhor retrato que temos da brutalidade da ditadura militar.
Essa estranha distância irônica diante de seu próprio destino amargo dá a "Retrato Calado" a força dos que não querem ser empurrados para a vala do ressentimento. Força própria àqueles que sabem que a inteligência é a mais doce de todas as vinganças, e a única realmente permitida.
Se estivéssemos em um país que não teme seu passado, "Retrato Calado" seria adotado nas escolas de ensino médio, da mesma forma que os alemães adotaram em suas escolas livros sobre os horrores do nazismo.
Nossos estudantes aprenderiam não apenas a brutalidade do cárcere político, mas a altivez da inteligência irônica que nunca se quebra. Única forma de dizer o que não cessa de não se escrever.
Artigo do professor Vladimir Safatle, da Filosofia da USP. 
*GilsonSampaio

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