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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista
quinta-feira, maio 13, 2010
A Europa está implodindo?
A Europa está implodindo?
por Immanuel Wallerstein;
A Europa teve os seus opositores desde o início da longa senda para a unificação. Houve muitos que a acharam impossível. E houve muitos que a consideraram indesejável. Ainda assim, temos de dizer que, no longo e sinuoso caminho que seguiu desde 1945, o projeto de unificação europeia teve um notável sucesso. Afinal, a Europa fora dilacerada por conflitos nacionalistas durante pelo menos 500 anos, conflitos que culminaram na horrenda Segunda Guerra Mundial. E a vingança parecia ser o sentimento dominante. Em 2010, o que hoje se chama União Europeia (UE) alberga uma moeda única, o euro, usada em 16 países. Tem também uma zona de 25 membros, chamada Schengen, que permite uma forma de livre circulação, sem vistos. Tem uma burocracia central, um tribunal de direitos humanos, e está a caminho de ter um presidente e um ministro de Relações Exteriores.
Não se deveria exagerar a força destas estruturas, mas não se deveria também subestimar até que ponto tudo isto representou, para o bem ou para o mal, a superação da resistência nacionalista por toda a Europa, especialmente em alguns dos estados mais fortes. Contudo, também acontece que neste momento, em certos aspectos importantes, a Europa parece prestes a implodir. As palavras-chave desta implosão são “Grécia” e “Bélgica”.
A Grécia, como todo o mundo sabe, atravessa uma crise severa da sua dívida soberana. A Moody declarou que os títulos gregos estatais são lixo (junk bonds). O primeiro-ministro George Papandreou disse, muito relutantemente, que teria provavelmente de buscar o Fundo Monetário Internacional (FMI) para obter um empréstimo, um empréstimo que implica as habituais condições que exigem formas específicas de reestruturação neoliberal. Esta ideia é muito impopular na Grécia – um ataque à soberania grega, ao orgulho grego, e especialmente aos bolsos gregos. Também foi acolhida com desânimo em muitos estados europeus, que consideram que a ajuda à Grécia deveria vir, em primeiro lugar, dos outros membros da UE.
A explicação deste cenário é bastante simples. A Grécia tem um grande déficit orçamentário. Como o país é parte da zona euro, não pode desvalorizar a moeda para aliviar o problema. Por isso, precisa de ajuda financeira. O país maior e mais rico da Europa, a Alemanha, tem sido muito relutante, para não dizer pior, em dar essa ajuda. O povo alemão opõe-se fortemente a ajudar a Grécia, basicamente por um reflexo protecionista num momento de tensão europeia. Teme também que a Grécia seja o primeiro de uma fila de outros (Portugal, Espanha, Irlanda, e Itália) que façam pedidos semelhantes se a Grécia obtiver essa ajuda.
O povo alemão parece desejar que todos os problemas desapareçam, ou pelo menos que a Grécia de alguma forma seja expulsa da zona euro. Para além do fato de isto ser legalmente impossível, o país que mais sofreria as consequências disto, depois da Grécia, seria certamente a Alemanha, cuja riqueza econômica é amplamente baseada no forte mercado exportador que possui no interior da zona euro. Assim, de momento, parecemos estar num impasse. E os abutres do mercado pairam sobre os países da zona euro que estão em dificuldades com sua dívida soberana.
No meio disto, a agora perene crise belga voltou a manifestar-se de forma particularmente aguda. A Bélgica, como país, chegou à existência como resultado de políticas pan-europeias. O colapso do império Habsburgo de Carlos V resultou na partição dos chamados Países Baixos da Borgonha nas Províncias Unidas no Norte e nos Países Baixos Austríacos no Sul. As Guerras Napoleonicas levaram a que as duas partes se unissem de novo no restaurado Reino dos Países Baixos. E os conflitos europeus de 1830 levaram mais uma vez à divisão das duas partes, com a criação da Bélgica, mais ou menos no que outrora tinham sido os Países Baixos Austríacos, com um rei importado de fora.
A Bélgica sempre foi um composto de “Flamengos” de fala holandesa e de “Valões” de língua francesa, em grande parte, mas imperfeitamente localizados em dois diferentes setores geográficos (o norte e o sul da Bélgica). Há também uma pequena zona de fala alemã.
Até 1945, os valões eram os mais ricos e educados, e controlavam as principais instituições do país. O nacionalismo flamengo nasceu como a voz dos desfavorecidos lutando pelos seus direitos políticos, econômicos e linguísticos. Depois de 1945, a economia belga sofreu uma mudança estrutural. As áreas dos valões perderam e as áreas flamengas ganharam força. A política belga, em consequência, tornou-se uma luta infindável dos flamengos para obter mais direitos políticos – devolução de poderes, com muitos tendo o objetivo final de dissolver a Bélgica em dois países.
Pouco a pouco, os flamengos foram obtendo mais e mais. Hoje, a Bélgica, como país, tem uma monarquia comum, um ministro das Relações Exteriores comum e muito pouco mais. A questão problemática neste acordo é que a Bélgica é hoje um estado confederado, com três, não duas, regiões – Flandres, Valônia, e Bruxelas (a capital).
Bruxelas não é só a capital da Bélgica. É a capital da Europa, a sede da Comissão Europeia. Bruxelas é também uma cidade bilingue. E os flamengos insistem em torná-la menos. O problema é que, mesmo que houvesse um acordo para a dissolução da Bélgica, não haveria uma forma fácil de chegar a acordo sobre o destino de Bruxelas.
A última negociação foi tão intratável que o Le Soir, o principal jornal de língua francesa, proclamou que “a Bélgica morreu em 22 de Abril de 2010″. O principal editorialista perguntou: “Este país ainda faz sentido?” No momento, o rei está tentando, talvez em vão, recriar o governo. Pode ser forçado a convocar novas eleições, sem muitas esperanças de que estas produzam um parlamento realmente diferente. Em 1 de julho, a Bélgica assume a presidência rotativa, de seis meses, da UE, e não é certo que haja um primeiro-ministro belga que a presida.
O problema grego é o problema da propagação. Não haverá uma réplica das dificuldades – se é que isso já não acontece – noutros países da Europa? Será que o euro pode sobreviver? O problema belga apresenta contudo, um ainda maior problema de propagação. Se a Bélgica se divide, e ambas as partes serão então membros da UE, não haverá outros estados pensando em dividir-se? Afinal, existem importantes movimentos secessionistas ou quase secessionistas em muitos países da UE. A crise belga pode facilmente tornar-se a crise da Europa.
Das duas ameaças de implosão, aquela simbolizada pela Grécia é a mais fácil de resolver. Basicamente, é necessário que a Alemanha compreenda que as suas necessidades são melhor preenchidas pelo protecionismo europeu que pelo protecionismo alemão.
A crise belga coloca uma questão muito mais fundamental. Se a Europa estivesse disposta, imediatamente, a avançar para um verdadeiro estado federativo, poderia acomodar a explosão de qualquer dos seus estados existentes. Mas, até agora, não se mostrou disposta a isso. E as dificuldades econômicas mundiais coletivas reforçaram em muito os estreitos elementos nacionalistas em virtualmente todo país europeu, como demonstraram todas as recentes eleições. Sem uma forte federação europeia, seria extremamente difícil que a Europa sobrevivesse a uma corrente de divisões. No meio da destruição política, a Europa poderia ir pelo cano abaixo.
Há uma certa Schadenfreude (alegria mordaz) entre os políticos americanos acerca das dificuldades europeias. Porém, o que pode salvar a Europa da implosão é precisamente a sempre crescente ameaça de implosão dos Estados Unidos. A Europa e os Estados Unidos estão numa gangorra, na qual enquanto um sobe, o outro desce. Que resultado isto vai ter nos próximos dois a cinco anos é tudo menos claro.
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