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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista
segunda-feira, maio 10, 2010
Lula: Sancho e Quixote no El País
Lula: Sancho e Quixote no El País
Na pena de Gustave Doré, Sancho ouve o povo para governar a Ilha
É uma peça imperdível a entrevista de Lula ao jornal espanhol El País, algo que jamais seria feito por um grande jornal brasileiro. Apenas algo devo esclarecer, antes, para nós que, ao contrário dos espanhóis, não temos tanta intimidade com o clássico D. Quixote, de Miguel de Cervantes.
Sancho Pança é colocado como uma brincadeira dos nobres a governar a “Ilha da Barataria”. Com os conselhos de Quixote – “faze gala, Sancho, da humildade de sua linhagem, e não te pejes de dizer que provéns de lavradores, pois vendo que não te envergonhas, ninguém se porá a envergonhar-te. (…) – e sua honesta simplicidade, ele “governa” com rara sabedoria.
Eis a entrevista, traduzida por Eloise De Vylder, do UOL Notícias:
“Prefiro o carnaval à guerra”. Lula coloca sua mão de operário sobre o meu joelho, num gesto de cumplicidade, de camaradagem, de evidente franqueza, porque essa é a sua força e sua convicção, a de se comportar de acordo com aquilo que é, da forma como os brasileiros verdadeiramente o veem. “Sou um deles, uma pessoa como eles”. Lula vem de onde eles vêm, fala como eles falam, “não sou um estranho no ninho”, e até chegar ao poder vestia-se como eles se vestem, “embora tenha trabalhado vinte e sete anos usando um macacão, nunca fiquei à vontade; depois de dois meses usando gravata não tive dificuldade para me acostumar a ela, é uma peça bonita”.
Lembrei-me da reflexão de Sancho Pança antes de se tornar governante da ilha Barataria [no clássico “Dom Quixote de La Mancha”, de Cervantes]: “vistam-me como quiserem, pois qualquer que seja a roupa que ponham em mim, serei sempre o mesmo Sancho Pança!”. Porque o hábito não faz o monge, e Lula é Lula não importa o que esteja vestindo. “Disseram que eu teria de ir de fraque ao jantar no palácio com o rei da Espanha, mandei dizer a Juan Carlos que eu não usava isso, e muitos me criticaram aqui no Brasil, ‘que falta de elegância, de capacidade para exercer a presidência!’, até que o rei ligou e disse ‘venha como quiser’, fui de terno e gravata, porque não quero ser visto como um estranho pelo povo. O que acontece é que a liturgia do poder está toda preparada para nos distanciar do povo. Quando você é candidato, vai para todo lugar de camisa, cumprimentando as pessoas, mas uma vez que chega à presidência o colocam num carro blindado e você nunca mais vê o rosto dos cidadãos.”
Pergunto-me com o que as greves se parecem mais, com as guerras ou os carnavais. Luiz Inácio Lula da Silva forjou sua carreira política nas mobilizações populares, na agitação nas ruas e na luta em defesa dos direitos dos trabalhadores. Quase um milhão e meio de operários brasileiros entrarem em greve, liderados por ele, durante o ano de 1979, e a partir desta data, este combativo dirigente sindical empreendeu uma carreira política cheia de altos e baixos que o levaria, 25 anos mais tarde, à presidência da República.
“É notável que nem eu e nem meu vice, um empresário de sucesso, tenhamos diploma universitário”, afirma com um certo orgulho que irrita a oposição por causa da ambiguidade que a mensagem pode representar num país em que a educação é o objetivo fundamental do governo e o empenho necessário para acabar com as desigualdades e a pobreza. Mas o que ele quer dizer é que a democracia funciona no Brasil, que não são os méritos profissionais, acadêmicos, nem de qualquer outro gênero, que são decisivos para chegar ao poder, mas sim a vontade dos eleitores. Um poder que Lula deixará, pelo menos formalmente, no próximo mês de dezembro depois de oito anos de exercício, e do qual sai cercado de tanta popularidade que alguns esperam que ele saia levitando a qualquer momento, como fez o personagem de García Márquez em “Cem Anos de Solidão”, só que por consumir café brasileiro, que ele bebe o tempo todo com avidez, em vez de xícaras de chocolate.
“O momento mais extraordinário do poder é o período entre o dia da vitória e a tomada de posse. Logo dá para perceber que as coisas não são tão fáceis, que se está diante de uma série de obstáculos. Eu teria motivos de sobra para dizer que o poder me deu mais alegrias do que tristezas, porque poucas vezes na história do Brasil aconteceram coisas tão importantes como durante meu governo, mas sairei lamentando o que não pude fazer, a reforma do Estado, por exemplo. Não conseguimos dar mais agilidade ao Estado; desde que uma decisão é tomada e até que ela seja executada nos deparamos com quinhentos obstáculos em nome da democracia. Há o Congresso Nacional, com suas duas câmaras, a administração pública, os sindicatos, a Justiça, as questões ambientais, nas quais as ONGs são muito ativas… Ou seja, passam-se dois anos ou três antes que um projeto se cristalize. Faz falta um consenso que nos permita eliminar tantas dificuldades e atrasos. Não podemos renunciar à fiscalização, mas tampouco é aceitável utilizá-la como uma forma de impedir que se façam as coisas de que o Brasil necessita.”
Seu pragmatismo, seu jeito bonachão, seu bom senso, tudo nele faz lembrar o governador da ilha Barataria. Quase oito anos depois de ocupar a Presidência da República, suas maneiras pessoais, seu método de trabalho, seu ar decidido e brincalhão são os mesmos do jovem Lula que, fugindo da burocracia sindical, reunia-se durante as tardes no bar da Tia Rosa em São Bernardo do Campo, cidade onde ele ainda mantém a casa de sua família. Lá, com seus companheiros de luta, muito mais um grupo de amigos do que um comitê organizado, preparavam entre um copo e outro as mobilizações em defesa de um salário maior para os operários. Nenhuma ideologia alimentava suas ações, que em seguida receberam apoio, entretanto, dos movimentos de base católicos.
“O PT não teria existido sem a ajuda de milhares de padres e comunidades cristãs do Brasil, ele deve muito ao trabalho da Igreja, à teologia da libertação, aos padres progressistas. Tudo isso contribuiu para minha formação política, a construção do PT e minha chegada ao poder. Minha relação pessoal com a Igreja Católica foi e continua sendo muito forte, mas somos um país laico, tratamos todas as religiões com respeito”.
Seu chefe de gabinete, Gilberto Carvalho, interrompe por um momento. “Este aqui era seminarista, ia ser padre, e abandonou tudo para entrar no PT, para trabalhar comigo”. Lula despacha alguns assuntos à sombra de um crucifixo gigantesco que se destaca sobre sua mesa de trabalho, enquanto eu fico imaginando que, para alguns petistas da época, a agitação política era também uma espécie de sacerdócio. A influência religiosa (“esta é a Igreja mais progressista da América Latina, provavelmente do mundo”) é evidente também no tratamento das leis de aborto no Brasil, ainda que o presidente busque a equanimidade. O Vaticano “tem uma atitude muito conservadora sobre esse ponto. No Brasil, o aborto é proibido, exceto em caso de violação da mãe. Eu, como cidadão, sou contra o aborto, e não acredito que nenhuma mulher seja favorável porque ele gera um grande sofrimento para quem o pratica. Mas como chefe de Estado, penso que se trata de uma questão de saúde pública. Devemos proteger as meninas que tentam abortar por conta própria colocando agulhas no útero e coisas assim. O Estado tem a obrigação de atender essas pessoas.”
Para os progressistas europeus, que adoram Lula, uma declaração desse gênero pode ser decepcionante, tanto quanto à declaração que ele mesmo deu, muitas vezes, afirmando que não se considera de esquerda. “Minha trajetória, meu perfil político, minha vida no sindicato, a criação do PT, caracterizam-me, sem dúvida, como um esquerdista. Mas o próprio PT é uma novidade na esquerda mundial. Nasceu contra todos os dogmas dos partidos marxistas-leninistas, que obedeciam fielmente à Rússia ou à China. No começo era algo parecido com uma torcida de futebol; um grupo de trabalhadores que, junto com o movimento social, a Igreja Católica e alguns intelectuais que haviam acreditado na luta armada e participado dela, decidiram criar um partido político. Não tínhamos na época um programa definido e nunca gostei que me rotulassem, menos ainda ao assumir a presidência. Um chefe de Estado não é uma pessoa, é uma instituição, não tem vontade própria todo o santo dia, mas tem que levar a cabo os acordos que sejam possíveis. Aprendi isso no poder e creio que foi bom para o Brasil. Não posso gostar de um presidente porque ele é de esquerda e não gostar de outro porque é de direita. Eu me dei bem com Aznar e com Zapatero, e tenho que me relacionar com Piñera no Chile da mesma forma que fiz com Bachelet. No exercício do poder, sou um cidadão, como diria…? Multinacional, multi-ideológico, não?”
Com seus olhos brilhantes e inquietos, quer minha aprovação para esse pragmatismo, e de repente se transforma num líder de torcida, a torcida brasileira; levanta-se, senta-se, volta a levantar-se, sorri primeiro, logo estremece, vira, ergue as sobrancelhas, busca a proximidade, o carinho, sou apenas mais um brasileiro, apenas mais um cidadão deste país que é capaz de contagiar a alegria, deste país com trezentos dias de sol por ano, deste país imenso, autossuficiente, pacífico, “do qual estamos tentando eliminar 50 ou 60 anos de atraso, de desconfiança, anos em que ninguém queria investir aqui. E por isso estamos construindo um capitalismo moderno, um Estado de bem-estar social. Quando entrei no governo, o Brasil não tinha crédito, não tinha capital de trabalho, nem financiamento, nem distribuição de renda. Que raio de capitalismo era esse? Um capitalismo sem capital. Resolvi então que era preciso primeiro construir o capitalismo para depois fazer o socialismo; é preciso ter o que distribuir para poder distribuir. Se o país não tem nada, não há nada para distribuir, e os empresários precisam saber que tem de pagar salários um pouco maiores para que as pessoas possam comprar os produtos que fabricam. Isso Henry Ford já dizia em 1912”.
Estamos em plena campanha eleitoral e Lula aproveita para fazer propaganda de seu partido, deixa escapar algumas críticas ásperas, provavelmente injustas, a seu antecessor, o social-democrata Fernando Henrique Cardoso, que foi seu companheiro na luta contra a ditadura, e a quem hoje não se mostra nada generoso. Mas o milagre brasileiro começou precisamente com Cardoso, um professor respeitado e um democrata exemplar que nivelou as contas públicas e venceu a inflação. Lula faz um balanço diferente. “Hoje o Banco do Brasil tem mais crédito do que o país inteiro tinha quando cheguei ao poder. Quando eu deixar a Presidência, teremos criado mais de 14 milhões de postos de trabalho em oito anos. Só a China a Índia podem competir com uma realidade assim”.
Pergunto então se isso é uma vitória do capitalismo, e ele se apressa a declarar que é um triunfo de seu governo “porque teve a coragem de enfrentar a crise, em vez de se queixar: fazendo investimentos, reduzindo os impostos em setores chave para a economia, empreendendo muitas obras públicas. Se o Brasil mantiver nos próximos cinco anos a seriedade nas políticas fiscal e monetária, nos investimentos e no controle da inflação, tem tudo para se transformar numa potência respeitada no mundo. Se a economia continuar crescendo entre 4,5% e 5,5%, em 2016 poderá ser a quinta economia mundial.”
Não sei se descubro rastros da herança portuguesa nessa fantasia um tanto hiperbólica do presidente, que faz com que ele se distancie por alguns momentos de sua sisuda prudência de Sancho Pança para se parecer mais à loucura idealista de seu senhor Dom Quixote, porque enquanto Lula fala, as pesquisas, lá fora, continuam apontando como provável vencedor, ainda que por uma pequena margem, José Serra, candidato do PSDB, o partido de Fernando Henrique.
“Ganhe quem ganhar, ninguém fará nenhuma loucura; o povo quer continuar caminhando, e não voltar atrás. Mas deixe-me dizer que eu não acredito na possibilidade de perdermos as eleições”. Muitos pensam que, se o PT ganhar, não será pelos méritos de Dilma, a candidata do partido, uma antiga guerrilheira e uma política eficaz, entretanto sem o carisma que as eleições presidenciais demandam, mas sim pelo formidável apoio que lhe presta o próprio Lula, cuja personalidade o impregna todo de lulismo. “Sim, eu sei que muita gente, para se justificar, diz, eu não gosto do PT, gosto do Lula; gente da direita, claro. Acontece com outros líderes políticos, Felipe González, por exemplo. Normalmente nós, enquanto figuras públicas, somos menos ideologizados do que os partidos e temos a capacidade individual de congregar pessoas que de maneira nenhuma se sentem próximas de nossas formações. Mas não acredito que haja um ‘lulismo’ como tal, prefiro saber que vamos fortalecer a democracia e que os partidos políticos conseguirão se organizar e fortalecer.”
Em todo caso, parece descartada a continuidade na política econômica, que Lula salvaguardou desde o princípio nomeando um antigo militante do partido de FHC como presidente do Banco Central. A consequência dessa política foi a prosperidade que permite situar o país entre as potências emergentes agrupadas em torno do que se passou a chamar de Bric (Brasil, Rússia, Índia e China). Junto a esses países, Lula fez valer sua voz afirmando sua independência como um protagonista singular e inclassificável da política internacional. Será que seu país está a caminho de se transformar numa superpotência? Poderia fazê-lo sem possuir – o único dos Bric nessa posição – uma arma atômica?
“A Constituição proíbe as atividades nucleares exceto para fins pacíficos. É proibido, quer ver?”, e aponta diligentemente com sua mão mutilada para o artigo 21, inciso 23. “O presidente não decide nas questões nucleares, é o Congresso, e não temos interesse em ser uma potência militar se não é do tamanho de nossa soberania. Precisamos de Forças Armadas adequadas para garantir a segurança do povo, para manter uma política de defesa respeitável. Não queremos invadir nenhum país, mas tampouco queremos que nos invadam…”.
Eu o interrompo, entre irônico e risonho: invadir o Brasil me parece difícil, presidente, uma tarefa quase titânica. E ele, impassível, responde: “não se pode menosprezar a loucura de alguns seres humanos, é preciso se proteger”. Se proteger de quem? Não acredito que seja de Chávez (“um homem muito inteligente, ainda que as vezes cometa equívocos e ele sabe disso”) nem de Evo (“um retrato de seu povo, ninguém o representa melhor que ele; no tema do petróleo, eu compreendi que o Brasil tinha que pagar mais à Bolívia, não briguei com Evo, porque ele tinha direito”) nem da Colômbia, Argentina ou Uruguai (“o Brasil trabalhou muito com eles para consolidar a democracia em sua plenitude. Temos que gerar uma política de confiança. A doutrina utilizada antes pelas grandes potências era considerar o Brasil como inimigo da América Latina, a grande ameaça; nós estamos destruindo essa visão negativa e demonstrando que podemos ser seu grande aliado”).
O lulismo, se é que existe, tem suas raízes no sindicalismo, na luta como pressão e o acordo como resposta. “O chamado mundo desenvolvido tem que compreender que a geopolítica mudou. A democratização da África e o crescimento de países como a China, Índia e alguns da América do Sul sugerem uma nova dimensão. Eu não quero a guerra, sou um homem de diálogo, e na questão nuclear o Brasil tem uma política muito definida. Quero esgotar até o último minuto as possibilidades de um pacto com o presidente do Irã para que ele possa continuar enriquecendo urânio, e que tenhamos a tranquilidade de que ele só vai utilizá-lo para fins pacíficos. Meu limite são as decisões da ONU, a qual, é claro, pretendo mudar porque da forma como está ela representa muito pouco. Por que o Brasil não é membro do Conselho de Segurança? Por que a Índia não é? Por que não há nenhum Estado africano? Se a ONU continuar fraca assim, sem representatividade, com países com direito de veto, nunca servirá corretamente ao governo global que é necessário.”
Felipe González disse que os ex-presidentes são como os vasos chineses. Todo mundo em casa sabe que se trata de peças valiosas que vale a pena conservar, ainda que não necessariamente apreciem sua beleza e as pessoas não saibam onde colocá-los: estejam onde estiverem, sempre atrapalham a passagem. A partir do próximo mês de dezembro, Luiz Inácio Lula da Silva, um dos políticos mais carismáticos, admirados e surpreendentes do último meio século, aumentará essa coleção de grandes porcelanas. Os visitantes dos museus de cera venerarão sua imagem, assim como a de Lincoln, a de Mandela, a de tantos grandes homens que foram capazes de surgir do nada. Cheio de vida, transbordante de ideias, não o imagino aposentado em seu apartamento em São Bernardo, compartilhando com seus vizinhos as nostalgias de um tempo passado.
“O melhor serviço que um ex-presidente da República pode prestar é ficar calado, deixar quem quer que ganhe as eleições governar e permanecer em silêncio”. O silêncio é de ouro, mas não imagino Lula assim quando há tanto a denunciar, tanto a reivindicar, tanto a propor. Então, talvez se limite a ficar ausente, ou distante. “Vou sair do governo tendo colhido um monte de políticas bem sucedidas e quero compartilhar esse aprendizado, essa autêntica lição de vida, com os países mais pobres da América Latina e da África. Não sei se o farei através de uma fundação, porque em hipótese alguma quero fazer nada que não esteja em consonância com o governo. Só quero transmitir aos demais a experiência que adquiri, porque os pobres não têm acesso aos governantes, os pobres não vão aos coquetéis, claro, e isso porque não há nenhum político que ganhe uma eleição falando mal deles, podem insultar os banqueiros, os grandes empresários, mas os pobres… de forma alguma, em campanha eleitoral um pobre é a coisa mais extraordinária do mundo. E uma vez que o candidato ganha a eleição, termina seu mandato sem se reunir com um pobre nenhuma vez, só sabe que eles existem porque lê os jornais, não há interação, não há vínculo. No próximo Natal, quando meu mandato chegar ao fim, quero convidar de novo os catadores de São Paulo. Há oito anos que me reúno com eles no palácio nessa época (também fiz isso com os sem-teto, com os invasores) e comprovamos que essas pessoas não querem parar de catar papel, mas aspiram a uma existência mais digna, ou seja, querem que organizemos cooperativas, centenas delas em todo o Brasil, financiadas pelo Estado, que deem trabalho a centenas de milhares de pessoas, capazes de levar todos os dias para casa alguma coisa para comer graças ao resultado de seu trabalho.”
Quando tudo isso acontecer, o palácio presidencial já terá sido reconstruído. Por enquanto, Lula se aloja em escritórios emprestados do Centro Cultural do Banco do Brasil enquanto os operários se esforçam para recuperar as envelhecidas estruturas do Planalto, cuja reforma não foi concluída para a celebração do cinquentenário de Brasília. Mas no próximo 23 de dezembro o presidente vai se despedir dos catadores paulistas nos aposentos elegantes e sóbrios destinados ao dirigente da nação. Talvez o faça pensando, como Sancho em sua partida, que “saindo nu como saio, não é necessário outro sinal para dar a entender que governei como um anjo”. Tenho certeza, pelo menos, que o cronista desse futuro vindouro poderá novamente relatá-lo com as mesmas palavras de Cervantes: “Todos o abraçaram, e ele, chorando, abraçou a todos, e os deixou admirados, tanto por suas razões como por sua determinação tão resoluta e tão discreta”. É isso.
Brizola Neto
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