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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

terça-feira, maio 11, 2010

A verdadeira lição da crise grega: Deixemos que o neoliberalismo morra com o euro




A verdadeira lição da crise grega: Deixemos que o neoliberalismo morra com o euro


Por que há déficits orçamentários enormes em todo planeta? Não é porque, de repente, todos os funcionários do mundo tenham se convertido em burocratas de estilo soviético. É, e muito, porque uma economia global em declínio levou à diminuição de renda e a um gasto público maior na rede de seguridade social. O cúmulo da ignorância econômica é propor a destruição dessa rede de seguridade social a partir de uma extrapolação das lições equivocadas proporcionadas pelos problemas particularíssimos em que a própria Zona do Euro se meteu. A análise é de Marshall Auerback.

São legiões de analistas de mercados, gazeteiros e economistas que não se cansam de repetir o quanto é difícil para eles achar um padrão que situe os EUA numa posição financeira melhor que a da Grécia. Ken Rogoff, por exemplo, advertiu recentemente de que uma quebra da Grécia traria consigo uma série de quebras soberanas; também recentemente se sugeriu no NPR [Blog Planet Money] que a crise teria implicações para os EUA. O historiador Nial Ferguson fez observações de teor parecido no Financial Times há alguns meses. Os grunhidos dos falcões do déficit sobem de tom. Arrependei-vos libertinos fiscais, que o dia do juízo final se aproxima!

Deixemos de lado a histeria retórica bíblica, agora que ainda estamos em tempo de debater com racionalidade. A resposta recente do mercado às pressões cada vez mais intensas na Zona do Euro sugerem que os investidores começam a distinguir entre países que são emissores soberanos de moeda, como os EUA e o Japão, e emissores não-soberanos, como a Grécia e qualquer outra nação na Zona do Euro. O dólar se valoriza, apesar do déficit público dos EUA, enquanto o sofrimento que emana da dívida nos países PIIGS, sobretudo na Grécia, intensifica-se; isso traz consigo a queda do euro em relação ao dólar nos seus níveis mais baixos dos últimos 12 meses.

O comportamento distinto das diferentes moedas em relação ao dólar estadunidense se torna fartamente esclarecedor a esse respeito. No último trimestre, os dólares australianos, neozelandeses e canadenses registraram altas em torno de 4% em relação ao estadunidense. E a maior queda? O euro, que no mesmo período registrou baixas pouco surpreendentes de 6,3%. Conscientemente ou não, os mercados estão demonstrando que compreendem a diferença entre as nações que usam uma moeda (e que, pelo mesmo motivo, enfrentam uma restrição financeira externa) e as nações que não enfrentam qualquer restrição estrangeira nas suas políticas de gasto público, porque são nações criadoras de moedas.

Que os EUA disponham de moeda reserva é irrelevante neste contexto. A distinção-chave segue sendo a que separa o usuário do criador. As nações da Zona do Euro são usuárias; Canadá, Austrália, Reino Unido, Japão e EUA são criadoras de moeda.

Erram aqueles que, como Rogoff e um sem número de comentaristas, empenham-se em buscar analogias entre os países PIIGS e os EUA e o Reino Unido. A debilidade analítica desses críticos do déficit público decorre de sua incapacidade de distinguir entre o leque de políticas monetárias que se oferecem às nações criadoras de moeda, o leque que se oferece a nações monetariamente soberanas e aquele disponível às nações que não são soberanas monetariamente. Qualquer governo soberano – e os da União Européia não desfrutam dessa condição – pode lidar financeiramente com um colapso na receita e um aumento de gastos, sem terminar no beco sem saída em que a Zona do Euro se encontra, agora. Daí porque, por exemplo, o yen japonês não despenca em queda livre frente ao dólar, apesar da dívida pública japonesa representar 200% de seu PIB, quer dizer, numa razão que multiplica por 2,5 a da dívida pública estadunidense. O certo é que nos últimos dias, até o yen tem se valorizado frente ao dólar. Por que será, se a lição que supostamente deveríamos aprender é a dos males dos gasto públicos deficitários, “insustentáveis”?

A sustentabilidade fiscal é irrelevante num sistema que não enfrenta restrições operativas à capacidade do Estado para gastar. Os cheques da Seguridade Social estadunidense não seriam devolvidos por falta de fundos. Tampouco seus equivalentes canadenses ou japoneses. Analogamente, seus títulos da dívida pública sempre serão capazes de dar lucro.

Observe-se que isso não significa que não haja verdadeiras restrições de recursos em matéria de gasto público. Diga-se assim: quem quer que promova o uso de políticas fiscais como ferramenta de contra-estabilização efetiva tem de saber sempre que essas intervenções têm um custo. Esse custo bem que poderia ser a inflação se, como resultado da expansão fiscal se chegasse ao pleno emprego e se, mesmo que aumentassem as restrições de recursos o governo seguisse gastando. Mas se a economia não se recupera, a receita fiscal aumentará e o gasto líquido na rede de seguridade social e bem estar cairá. Nos EUA, isso significa que voltaremos provavelmente à “normalidade”, com déficits em torno de 2-4%, segundo o estado da economia, que são níveis que temos tido nos últimos 30 anos, fora o período de 1998-2001.

Por que esses déficits não resultariam inflacionários? Como o professor Scott Fullwiler observou numa troca de emails comigo há pouco, uma vez que a marcha de recuperação esteja em alta, e que a economia recobre uma capacidade significativamente maior de utilização – no que poderiam parecer pressões para uma alta de preços -, o déficit baixará substancialmente. Também será parcialmente diminuído por uma queda discreta no gasto com bem estar social. É paradigmático que, quanto mais rapidamente cresce a economia, tanto menor é o déficit, a menos que o governo siga gastando irresponsavelmente, coisa pela qual, deve-se dizer, não advogamos.

E, chegando ao ponto em que poderíamos chegar a ter inflação, o déficit terá retornado aos níveis de 2,3%, que é, como se disse, o que temos tido nos últimos 30 anos, período em que a inflação girou em torno de 2%. observe-se: inflação não equivale a quebra. Vocês e eu poderíamos comprar credit default swaps, quer dizer, permutas de inadimplência creditícia, de qualquer país do mundo, mas seríamos incapazes de recolher os lucros dessa compra sem que quaisquer dos países em questão registre uma taxa positiva de inflação – inclusive uma taxa de inflação de dois dígitos -, porque inflação e quebra não são equivalentes. Tampouco as agências de classificação de risco categorizariam dessa maneira a quebra. A quebra se define como incapacidade para levar a cabo uma tarefa ou de honrar uma obrigação, particularmente uma obrigação financeira. A inflação não se incorpora na definição, quando se trata de insolvência nacional.

Em troca, a idéia de uma quebra grega prevalece nos mercados, e se torna por consequência uma preocupação razoável no contexto da Zona do Euro. A opção da quebra se considera pouco menos que inevitável, ainda que se ponha em curso um resgate massivo de 110 bilhões de euros que, destinado a provocar “assombro e temeridade” entre os investidores, tenha se limitado só a assombrar. Se resgatar a Grécia custa 110 bilhões de euros, quanto custará resgatar a Espanha, a Itália ou a França?

Se os mercados se preocupam com a capacidade de solvência de um país, não lhe oferecerão créditos. E esse é o problema que todos os países da Zona do Euro enfrentam. Grécia, Portugal, Itália, França e Alemanha são todas nações usuárias das emissões de euros. A esse respeito, assemelham-se a uma municipalidade dos EUA, que são usuários do dólar emitido pelo governo federal do país.

Os déficits, por si mesmos, não fornecem as bases de uma quebra dos EUA. Se os EUA segue incorrendo em déficits exportadores líquidos (o que é o mais provável, dado o curso da queda do valor do euro), e se o setor interno privado tem poupança líquida, o governo dos EUA terá de fazer gasto líquido, quer dizer, incorrer em déficits. E isso é uma equação contábil elementar: nada mais nem nada menos. Se, nessas circunstâncias, o governo dos EUA consegue obter dividendos, o que conseguirá, de imediato, será forçar o setor privado nacional a incorrer em déficits (e a aumentar sua dívida), e terminará fracassando, porque o que o setor privado fará será tratar de aumentar mais uma vez sua taxa de poupança.

A mesma lógica vale para a Grécia. Supõe-se que o pacote de ajude do FMI e da UE é para reduzir seu déficit orçamentário, dos atuais 13,6% do PIB para 8,1% em 2011. Como o conseguirão? Buscar uma redução de déficit mediante programas de austeridade (ou de congelamentos, ou de como se quiser chamar) em um momento em que o gasto privado já é insuficiente para manter um crescimento adequado do PIB é a receita mais segura para o desastre, o que provocará é um aumento do déficit.

Considere-se nesse contexto o caso da Irlanda como amostra. A Irlanda começou a cortar o gasto deficitário já em 2008, quando teve início sua crise bancária e seu déficit orçamentário representava 7,3% do PIB. Não tardou para a economia se contrair em 10% e, oh, que surpresa!, seu déficit disparou para 14,3%. Podemos estar certos de que a Grécia aguarda um destino similar, dada a incapacidade da União Européia para compreender ou ainda categorizar os balanços financeiros básicos e as interrelações fundamentais entre os vários setores da economia. Nenhum governo, tampouco o FMI pode prever com segurança qual será o resultado; ao final, o que determinará o resultado serão as preferências privadas de poupança, como Bill Mitchell observou repetidas vezes.

Por que há déficits orçamentários enormes em todo planeta? Não é porque, de repente, todos os funcionários do mundo tenham se convertido em burocratas de estilo soviético. É, e muito, porque uma economia global em declínio levou à diminuição de renda (menos renda = menos impostos arrecadados, visto que o grosso da arrecadação se baseia na renda, e menos módulos fiscais) e a um gasto público maior na rede de seguridade social. O cúmulo da ignorância econômica é propor a destruição dessa rede de seguridade social a partir de uma extrapolação das lições equivocadas proporcionadas pelos problemas particularíssimos em que a própria Zona do Euro se meteu. Essa ignorância, porém, reflete também uma agenda política transparente que os EUA fariam muito mal em abraçar. Os pacotes de resgate, a intervenção do FMI e todo esse papo fiado sobre as “quebras ordenadas” dos PIIGS [Portugal, Itália, Irlanda, Grécia e Espanha, em sua sigla em espanhol] não podem esconder o erro fundamental no desenho da União Monetária Européia. Deixemos que o neoliberalismo morra com o euro.

Marshall Auerbak é analista econômico dos EUA e membro conselheiro do Instituto Franklin e Eleanor Roosevelt

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