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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

sexta-feira, novembro 04, 2011

Hoje, a maioria dos países latino-americanos tem economias em crescimento e bancos sólidos. O que desejamos para a Europa é que suas economias comecem a assemelhar-se mais às da nova América Latina e menos às da velha Europa

MOISÉS NAÍM

Latino-americanização da Europa



Qualquer sugestão de que havia lições a tirar de crises na América Latina era rejeitada pelos europeus

Algumas semanas atrás, participei de uma reunião em Bruxelas que coincidiu com a cúpula em que líderes europeus traçaram o plano para estabilizar o velho continente. Também por coincidência, muitas das delegações à cúpula estavam hospedadas no hotel em que minha reunião -que não era ligada à cúpula- estava tendo lugar.
Inevitavelmente, ao final do dia ou durante o café da manhã, vários colegas e eu conversávamos informalmente com amigos que trabalham nas equipes técnicas que dão apoio às negociações de alto nível.
As histórias, a ansiedade e a exaustão deles (trabalhavam sem parar havia vários meses) trouxeram de volta muitas memórias: numa carreira anterior, eu estive envolvido em um processo semelhante em meu próprio país, a Venezuela, e depois trabalhei no Banco Mundial e estive próximo de negociações semelhantes em outros países.
Em Bruxelas, fiquei fascinado com as semelhanças entre a crise europeia e as que testemunhei no passado. Mas fiquei ainda mais surpreso ao constatar que as autoridades europeias ignoravam as experiências de outros países com crises.
Qualquer sugestão de que poderia haver lições úteis a tirar das crises de dívida latino-americanas era rejeitada educadamente, mas com firmeza. "A Europa é diferente" foi a reação automática deles. "Temos o euro; nossas economias e sistemas financeiros são diferentes, assim como nossa política e cultura."
Isso tudo é verdade. Mas há outras realidades que também são verdade. Entre 1980 e 2003, a América Latina sofreu 38 crises econômicas, e a região -suas autoridades, os reguladores e, sim, até mesmo o público e os políticos- aprendeu com esses episódios dolorosos.
Talvez a lição principal seja o que eu chamo "o poder do pacote". O "pacote" é um conjunto abrangente, maciço, digno de crédito e sustentável de medidas, que não oferece só cortes e austeridade, mas também crescimento, redes de segurança social, reformas estruturais, empregos e esperança para o futuro.
Decisões econômicas fragmentadas, tomadas em partes e frequentemente contraditórias não funcionam. Elas são muito tentadoras, porque criam a ilusão de uma solução que evita as medidas mais impopulares. Mas, mais cedo do que tarde, a realidade teima em mostrar que as medidas parciais não estão funcionando, que se desperdiçaram tempo e dinheiro e que outra coisa se faz necessária.
E essa outra coisa é o pacote abrangente, que inclui remédios fortes para todos os males que afetam a economia: dívida demais, gastos governamentais demais, bancos insuficientemente capitalizados, supervisão ineficiente, políticas fiscal e monetária não coordenadas, baixa competitividade internacional e regras que inibem o investimento e a geração de empregos.
Quando críticos descrevem a crise europeia como sendo "semelhante à latino-americana", pensam na América Latina que sofreu as crises, não na que sabe como evitá-las.
Hoje, a maioria dos países latino-americanos tem economias em crescimento e bancos sólidos. O que desejamos para a Europa é que suas economias comecem a assemelhar-se mais às da nova América Latina e menos às da velha Europa.

@moisesnaim

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