Os “ocupas” e a desigualdade econômica
O movimento global dos “ocupas” – acampamentos de estudantes e trabalhadores em áreas públicas de centenas de cidades em todo o mundo – iniciados no segundo semestre de 2011 tem entre suas principais bandeiras a crítica à desigualdade econômica.
De fato, a distribuição de renda e patrimônio em várias sociedades é estarrecedoramente desigual: nos Estados Unidos, de acordo com estudos do governo de 2008, 1% da população controla quase 25% da renda, 15 pontos percentuais a mais do que controlava em 1980. No Brasil, onde se comemora estar próximo ao nível de desigualdade estadunidense, a concentração de riqueza é ainda maior.
A crítica dos “ocupas” é especialmente pertinente num contexto global de taxa
do desemprego crescente, em que aumenta a parcela da população economicamente vulnerável: de acordo com a Organização Internacional do Trabalho, a taxa global de desemprego atingiu níveis recordes nos últimos três anos. Os “ocupas” pelo mundo, em especial o de Wall Street, Nova York, onde os protestos começaram em setembro e chegaram a reunir 15 mil pessoas, se definem como a mobilização dos “99%”, isto é, da parcela da população negativamente afetada pela desigualdade econômica.
O igualitarismo democrático radical, cerne da bandeira dos “ocupas”, é um princípio fundamental das tradições intelectuais e correntes políticas progressistas. De modo amplo, pode ser definido como a defesa de que todas as pessoas tenham o mesmo acesso a recursos e capacidades para participar das decisões da sociedade, especialmente das que as afetam. Uma discussão mais profunda desse princípio pode ser encontrada em As utopias reais (Alameda Editorial, no prelo), do pensador estadunidense Erik Olin Wright.
A favor da desigualdade
Dois argumentos são geralmente citados a favor da desigualdade econômica. Primeiro, argumenta-se que, para o sistema econômico se manter produtivo, é preciso gerar incentivos para as pessoas trabalharem e investirem, sustentados na existência de desigualdades. Políticas de redistribuição econômica, nessa perspectiva, reduzem os incentivos para trabalhar, o que faz com que os pobres não se esforcem para melhorar sua condição de vida e se reproduza uma ética do trabalho débil. Os ricos, seguindo essa lógica, têm menos incentivo para investir seus recursos se houver redistribuição, o que leva a uma estagnação da economia. A desigualdade econômica, de acordo com esse primeiro argumento, mantém o dinamismo do sistema produtivo e, como estimula a criação de empregos e uma ética do trabalho forte, beneficia toda a população, ricos e pobres.
Segundo, argumenta-se, a desigualdade de renda e patrimônio não é necessariamente um indicador de pobreza absoluta, o que realmente gera mazelas sociais. Índices de desigualdade podem indicar uma maioria de pessoas em bons apartamentos e uma minoria em castelos, por exemplo. Nesse sentido, a desigualdade econômica é, na teoria, compatível com uma sociedade sem carências materiais e, o que realmente importa, é dar um mínimo a toda a população.
O primeiro argumento não tem fundamento teórico e comprovação empírica. Não leva em consideração o poder dos diferentes atores no mercado; é o mundo das fábulas dos manuais de economia, os mercados livres, onde ninguém exerce seu poder para enriquecer às custas dos outros e do dinamismo econômico. Mas indivíduos e grupos com o poder de determinar investimentos comandam a base da sobrevivência da maioria da população, o acesso ao emprego, e, abusando de seu poder, bloqueiam políticas de redistribuição. Empiricamente, não há evidência de que o crescimento econômico seja acompanhado de redução da desigualdade econômica, uma das derivações do primeiro argumento.
Efeitos negativos
Para rejeitar o segundo argumento, é preciso provar que a desigualdade econômica tem um efeito negativo independente na sociedade e economia, isto é, independente do acesso a bens básicos de consumo. É isso que provam dois estudos recentes, o ensaio Politics of Inequality [A política da desigualdade] do sociólogo canadense David Calnitsky e The Spirit Level: Why Greater Equality Makes Societies Stronger [O nivelador: Por que mais igualdade fortalece as sociedades] dos cientistas sociais ingleses Richard Wilkinson e Kate Pickett. Esses estudos mostram que, em países desenvolvidos, sociedades desiguais tendem a ter piores taxas de expectativa de vida, mortalidade infantil, alfabetização, obesidade, gravidez precoce, transtorno mental, uso de drogas, violência, mobilidade social, participação política e autonomia econômica das mulheres. Isso implica, por exemplo, que, quanto mais desigual a sociedade, maior a proporção de pessoas com transtornos mentais.
A desigualdade econômica mina sistematicamente o funcionamento democrático. Isso se dá por pelo menos dois mecanismos. Primeiro, os ricos têm acesso mais fácil aos tomadores de decisão e capacidade de influenciá-los, de modo legal ou ilegal. Segundo, há um viés nas arenas políticas para atender aos interesses da parcela da população que controla os fluxos de investimento. Isso porque, se não há investimentos, se fragiliza o mercado de trabalho, prejudicando os trabalhadores (menos emprego) e onerando o Estado (menos arrecadação de impostos e mais repasses a políticas sociais). Mesmo em sistemas democráticos, propostas políticas que não atendem aos interesses dos ricos são muitas vezes deixadas de lado, por mais que gerem benefícios reais à sociedade.
Os “ocupas” põem justamente na pauta política a discussão de alternativas a
regimes econômicos desiguais e a experimentação do igualitarismo democrático radical. E, a não ser os ricos, que de fato saem perdendo, participar dessa discussão é do interesse de toda a população.
Publicado originalmente no Jornal dos Juízes para a Democracia nº55 e no jornal Brasil de Fato nº457.
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*João Alexandre Peschanski é sociólogo, coorganizador da coletânea de textos As utopias de Michael Löwy (Boitempo, 2007) e integrante do comitê de redação da revista Margem Esquerda: Ensaios Marxistas. Organizou o dossiê “Novas perspectivas do socialismo” no novo número da revista, Margem Esquerda 17.
*Tecedora
De fato, a distribuição de renda e patrimônio em várias sociedades é estarrecedoramente desigual: nos Estados Unidos, de acordo com estudos do governo de 2008, 1% da população controla quase 25% da renda, 15 pontos percentuais a mais do que controlava em 1980. No Brasil, onde se comemora estar próximo ao nível de desigualdade estadunidense, a concentração de riqueza é ainda maior.
A crítica dos “ocupas” é especialmente pertinente num contexto global de taxa
do desemprego crescente, em que aumenta a parcela da população economicamente vulnerável: de acordo com a Organização Internacional do Trabalho, a taxa global de desemprego atingiu níveis recordes nos últimos três anos. Os “ocupas” pelo mundo, em especial o de Wall Street, Nova York, onde os protestos começaram em setembro e chegaram a reunir 15 mil pessoas, se definem como a mobilização dos “99%”, isto é, da parcela da população negativamente afetada pela desigualdade econômica.
O igualitarismo democrático radical, cerne da bandeira dos “ocupas”, é um princípio fundamental das tradições intelectuais e correntes políticas progressistas. De modo amplo, pode ser definido como a defesa de que todas as pessoas tenham o mesmo acesso a recursos e capacidades para participar das decisões da sociedade, especialmente das que as afetam. Uma discussão mais profunda desse princípio pode ser encontrada em As utopias reais (Alameda Editorial, no prelo), do pensador estadunidense Erik Olin Wright.
A favor da desigualdade
Dois argumentos são geralmente citados a favor da desigualdade econômica. Primeiro, argumenta-se que, para o sistema econômico se manter produtivo, é preciso gerar incentivos para as pessoas trabalharem e investirem, sustentados na existência de desigualdades. Políticas de redistribuição econômica, nessa perspectiva, reduzem os incentivos para trabalhar, o que faz com que os pobres não se esforcem para melhorar sua condição de vida e se reproduza uma ética do trabalho débil. Os ricos, seguindo essa lógica, têm menos incentivo para investir seus recursos se houver redistribuição, o que leva a uma estagnação da economia. A desigualdade econômica, de acordo com esse primeiro argumento, mantém o dinamismo do sistema produtivo e, como estimula a criação de empregos e uma ética do trabalho forte, beneficia toda a população, ricos e pobres.
Segundo, argumenta-se, a desigualdade de renda e patrimônio não é necessariamente um indicador de pobreza absoluta, o que realmente gera mazelas sociais. Índices de desigualdade podem indicar uma maioria de pessoas em bons apartamentos e uma minoria em castelos, por exemplo. Nesse sentido, a desigualdade econômica é, na teoria, compatível com uma sociedade sem carências materiais e, o que realmente importa, é dar um mínimo a toda a população.
O primeiro argumento não tem fundamento teórico e comprovação empírica. Não leva em consideração o poder dos diferentes atores no mercado; é o mundo das fábulas dos manuais de economia, os mercados livres, onde ninguém exerce seu poder para enriquecer às custas dos outros e do dinamismo econômico. Mas indivíduos e grupos com o poder de determinar investimentos comandam a base da sobrevivência da maioria da população, o acesso ao emprego, e, abusando de seu poder, bloqueiam políticas de redistribuição. Empiricamente, não há evidência de que o crescimento econômico seja acompanhado de redução da desigualdade econômica, uma das derivações do primeiro argumento.
Efeitos negativos
Para rejeitar o segundo argumento, é preciso provar que a desigualdade econômica tem um efeito negativo independente na sociedade e economia, isto é, independente do acesso a bens básicos de consumo. É isso que provam dois estudos recentes, o ensaio Politics of Inequality [A política da desigualdade] do sociólogo canadense David Calnitsky e The Spirit Level: Why Greater Equality Makes Societies Stronger [O nivelador: Por que mais igualdade fortalece as sociedades] dos cientistas sociais ingleses Richard Wilkinson e Kate Pickett. Esses estudos mostram que, em países desenvolvidos, sociedades desiguais tendem a ter piores taxas de expectativa de vida, mortalidade infantil, alfabetização, obesidade, gravidez precoce, transtorno mental, uso de drogas, violência, mobilidade social, participação política e autonomia econômica das mulheres. Isso implica, por exemplo, que, quanto mais desigual a sociedade, maior a proporção de pessoas com transtornos mentais.
A desigualdade econômica mina sistematicamente o funcionamento democrático. Isso se dá por pelo menos dois mecanismos. Primeiro, os ricos têm acesso mais fácil aos tomadores de decisão e capacidade de influenciá-los, de modo legal ou ilegal. Segundo, há um viés nas arenas políticas para atender aos interesses da parcela da população que controla os fluxos de investimento. Isso porque, se não há investimentos, se fragiliza o mercado de trabalho, prejudicando os trabalhadores (menos emprego) e onerando o Estado (menos arrecadação de impostos e mais repasses a políticas sociais). Mesmo em sistemas democráticos, propostas políticas que não atendem aos interesses dos ricos são muitas vezes deixadas de lado, por mais que gerem benefícios reais à sociedade.
Os “ocupas” põem justamente na pauta política a discussão de alternativas a
regimes econômicos desiguais e a experimentação do igualitarismo democrático radical. E, a não ser os ricos, que de fato saem perdendo, participar dessa discussão é do interesse de toda a população.
Publicado originalmente no Jornal dos Juízes para a Democracia nº55 e no jornal Brasil de Fato nº457.
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*João Alexandre Peschanski é sociólogo, coorganizador da coletânea de textos As utopias de Michael Löwy (Boitempo, 2007) e integrante do comitê de redação da revista Margem Esquerda: Ensaios Marxistas. Organizou o dossiê “Novas perspectivas do socialismo” no novo número da revista, Margem Esquerda 17.
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