Páginas

Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

terça-feira, julho 24, 2012

A verdade é violenta


Violência & poder em Sampa 
“A violência é a base mais fraca possível para a construção de um governo. É a arma favorita do impotente”
Márcia Denser

“Qualquer um pode ser preso ou morto se estiver no lugar errado”, declarou a professora da USP e especialista em Sociologia Urbana, Vera da Silva Telles ao site Carta Maior desta semana, analisando o atual surto de violência e a ação policial nas periferias de São Paulo. Entre 17 e 28 de junho, segundo dados do Sistema de Informações Criminais, 127 pessoas foram assassinadas na capital. Durante o mês de junho, 39 cidades da Grande São Paulo registraram 166 mortos.
Na avaliação de Telles, a explosão de violência nas periferias de Sampa faz parte de “um embaralhamento dos critérios de ordem, no qual a ação dos agentes policiais gera um sentimento de imprevisibilidade nos moradores de tais áreas.” (apesar do jargão criptoacadêmico, é uma explicação muito simplista, confusa e rebuscada pro entendimento do leitor comum, vocês não acham?). Por outro lado, especula-se que o estopim para essa onda de “violência extralegal” seria um suposto confronto entre membros do PCC (Primeiro Comando da Capital) em 28 de maio, na zona leste, com oficiais da ROTA (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar), do qual teria resultado cinco mortes.
Para muitos, a violência do Estado – sobretudo um Estado tucano há décadas – é o ingrediente central dos assassinatos em Sampa, refletindo práticas higienistas, sem contar o encarceramento que se maximizou em toda a região, na mesma medida em que, sintomaticamente, extinguiram-se os empregos sob o império dum Estado excludente e privatista. Mas as conexões entre violência, poder e autoridade estão sutilmente articuladas em reflexões exemplares por Slavoj Zizek, em seu último livro (1), uma vez que ele considera o estudo do antagonismo da ordem social uma tarefa maior do nosso tempo.
Segundo o filósofo esloveno, a única maneira de nos orientarmos na charada da violência é nos concentrarmos em sua natureza paralática (a “paralaxe zizekiana” é o efeito do aparente deslocamento do objeto observado devido à mudança na posição do observador. A exemplo daquela frase de Malcolm Lowry: “Quando se olha diretamente para o abismo, este devolve o olhar”). Resumindo: como “reagimos” à violência e nela interferimos, modificando-a.
Inicialmente, é preciso examinar os curtos-circuitos entre os diversos níveis, digamos, entre poder e violência social. Uma crise econômica que causa devastação é vivenciada como poder incontrolável e quase natural, mas deveria ser vivenciada como violência. O mesmo acontece com a autoridade e a violência: a forma elementar de crítica da ideologia é exatamente desmascarar a autoridade como violência.
Aqui o autor se refere a Hannah Arendt que elaborou (2) uma série de distinções entre “poder”, “vigor”, “força”, “violência” e “autoridade”. “Força” deve ser reservada para as “forças da natureza” ou a “força das circunstâncias”, indicando a energia liberada por movimentos físicos ou sociais. Nunca deve ser intercambiável com o “poder” no estudo da política: a força se refere a movimentos da natureza e outras circunstâncias humanamente incontroláveis, enquanto poder é função das relações humanas.
Nas relações sociais, o poder resulta da capacidade humana de agir em concerto para convencer ou coagir os outros, enquanto “vigor” é a capacidade individual de fazer isso. “Autoridade” é uma “fonte” específica de poder. Representa o poder investido em pessoas em virtude de seus cargos e autoridade quanto a conhecimentos relevantes. Existe autoridade pessoal na relação pais e filhos, professor e aluno, padres ou pastores e comunidade de fiéis. Sua marca é seu reconhecimento inquestionável, não é necessária nem coação nem persuasão para que os outros obedeçam. Portanto, a autoridade não brota simplesmente dos atributos do indivíduo, seu exercício depende da disposição por parte dos outros de atribuir respeito e legitimidade e não da capacidade pessoal (as tais “gestão” & “competência” eternamente invocadas como mantras neoliberais) de alguém de persuadir ou coagir.
Portanto, é fundamental distinguir poder de violência: o poder é psicológico, uma força moral à qual as pessoas obedecem naturalmente, enquanto a violência impõe a obediência por meio da coação física. Os que empregam a violência podem impor temporariamente sua vontade, mas seu comando é sempre tênue, porque quando a violência acaba ou diminui, há ainda menos incentivo para obedecer às autoridades. O controle da violência exige vigilância constante. Violência de menos é ineficaz; violência demais gera revolta. A violência pode destruir o poder antigo, mas não pode criar autoridade que legitima o poder novo.
Logo, a violência é a base mais fraca possível para a construção de um governo. É a arma favorita do impotente: os que não têm muito poder tentam controlar os outros usando a violência. Ela raramente cria poder. O terrorista que explode um prédio ou assassina um político dá ao governo a desculpa que ele deseja para reduzir as liberdades individuais e expandir sua esfera de influência. Quando um governo recorre à violência, é porque sente que seu poder está se esvaindo. Os governos que dominam pela violência são fracos e sem legitimidade.
A proposta do terrorismo político de esquerda na EU nos anos 70/80 (o Baader-Meinhof na Alemanha, as Brigadas Vermelhas na Itália, a Action Directe na França, etc.) resultam duma época em que as massas estão totalmente imersas no torpor ideológico capitalista e a crítica da ideologia já não funciona mais, donde só o recurso ao real nu e cru da violência direta consegue despertá-las.
A “maioria silenciosa” pós-política de hoje não é estúpida, mas cínica e resignada. A limitação da pós-política é bem exemplificada não só pelo sucesso do populismo direitista, cujos expoentes europeus foram, apesar da impopularidade crescente, reeleitos “democraticamente”, a exemplo de Tony Blair (eleito também várias vezes a pessoa mais impopular do Reino Unido), Sarkozy, Berlusconi e outros.
Isto significa que o descontentamento geral não tem como encontrar uma expressão política eficaz. Há algo muito errado aqui: o problema não é que as pessoas “não sabem o que querem”, e sim que esta “resignação cínica” as impede de agir, de modo que o resultado é a estranha lacuna entre o que elas pensam e como agem, isto é, votam.
Portanto, a violência sistemática dos sucessivos, além de fracos e ilegítimos (ou deslegitimados/desmoralizados) governos tucanos em Sampa é o inevitável resultado catastrófico deste voto “cínico e resignado” da maioria silenciosa pós-política paulistana.
É isso aí. Uma pílula amarga de engolir, contudo, também segundo Zizek, “a verdade é violenta”.

(1)Vivendo no fim dos tempos. São Paulo, Boitempo, 2012.

(2)In Hannah Arendt. Rio, Sobre a Violência, Civilização Brasileira, 2009.

*esquerdopata

Nenhum comentário:

Postar um comentário