A verdade é violenta
Violência & poder em Sampa
“A violência é a base mais fraca possível para a construção de um governo. É a arma favorita do impotente”Márcia Denser
“Qualquer um pode ser preso ou morto se estiver no lugar errado”, declarou a professora da USP e especialista em Sociologia Urbana, Vera da Silva Telles ao site Carta Maior
desta semana, analisando o atual surto de violência e a ação policial
nas periferias de São Paulo. Entre 17 e 28 de junho, segundo dados do
Sistema de Informações Criminais, 127 pessoas foram assassinadas na
capital. Durante o mês de junho, 39 cidades da Grande São Paulo
registraram 166 mortos.
Na avaliação de Telles, a explosão de violência nas periferias de Sampa
faz parte de “um embaralhamento dos critérios de ordem, no qual a ação
dos agentes policiais gera um sentimento de imprevisibilidade nos
moradores de tais áreas.” (apesar do jargão criptoacadêmico, é uma
explicação muito simplista, confusa e rebuscada pro entendimento do
leitor comum, vocês não acham?). Por outro lado, especula-se que o
estopim para essa onda de “violência extralegal” seria um suposto
confronto entre membros do PCC (Primeiro Comando da Capital) em 28 de
maio, na zona leste, com oficiais da ROTA (Rondas Ostensivas Tobias de
Aguiar), do qual teria resultado cinco mortes.
Para muitos, a violência do Estado – sobretudo um Estado tucano há décadas
– é o ingrediente central dos assassinatos em Sampa, refletindo
práticas higienistas, sem contar o encarceramento que se maximizou em
toda a região, na mesma medida em que, sintomaticamente, extinguiram-se
os empregos sob o império dum Estado excludente e privatista. Mas as
conexões entre violência, poder e autoridade estão sutilmente
articuladas em reflexões exemplares por Slavoj Zizek, em seu último
livro (1), uma vez que ele considera o estudo do antagonismo da ordem
social uma tarefa maior do nosso tempo.
Segundo o filósofo esloveno, a única maneira de nos orientarmos na
charada da violência é nos concentrarmos em sua natureza paralática (a
“paralaxe zizekiana” é o efeito do aparente deslocamento do objeto
observado devido à mudança na posição do observador. A exemplo daquela
frase de Malcolm Lowry: “Quando se olha diretamente para o abismo, este
devolve o olhar”). Resumindo: como “reagimos” à violência e nela
interferimos, modificando-a.
Inicialmente, é preciso examinar os curtos-circuitos entre os diversos
níveis, digamos, entre poder e violência social. Uma crise econômica que
causa devastação é vivenciada como poder incontrolável e quase natural,
mas deveria ser vivenciada como violência. O mesmo
acontece com a autoridade e a violência: a forma elementar de crítica da
ideologia é exatamente desmascarar a autoridade como violência.
Aqui o autor se refere a Hannah Arendt que elaborou (2) uma série de
distinções entre “poder”, “vigor”, “força”, “violência” e “autoridade”.
“Força” deve ser reservada para as “forças da natureza” ou a “força das
circunstâncias”, indicando a energia liberada por movimentos físicos ou
sociais. Nunca deve ser intercambiável com o “poder” no estudo da
política: a força se refere a movimentos da natureza e outras
circunstâncias humanamente incontroláveis, enquanto poder é função das
relações humanas.
Nas relações sociais, o poder resulta da capacidade humana de agir em concerto
para convencer ou coagir os outros, enquanto “vigor” é a capacidade
individual de fazer isso. “Autoridade” é uma “fonte” específica de
poder. Representa o poder investido em pessoas em virtude de seus cargos
e autoridade quanto a conhecimentos relevantes. Existe autoridade
pessoal na relação pais e filhos, professor e aluno, padres ou pastores e
comunidade de fiéis. Sua marca é seu reconhecimento inquestionável, não
é necessária nem coação nem persuasão para que os outros obedeçam.
Portanto, a autoridade não brota simplesmente dos atributos do
indivíduo, seu exercício depende da disposição por parte dos outros
de atribuir respeito e legitimidade e não da capacidade pessoal (as
tais “gestão” & “competência” eternamente invocadas como mantras
neoliberais) de alguém de persuadir ou coagir.
Portanto, é fundamental distinguir poder de violência: o poder é
psicológico, uma força moral à qual as pessoas obedecem naturalmente,
enquanto a violência impõe a obediência por meio da coação física. Os
que empregam a violência podem impor temporariamente sua vontade, mas
seu comando é sempre tênue, porque quando a violência acaba ou diminui,
há ainda menos incentivo para obedecer às autoridades. O controle da
violência exige vigilância constante. Violência de menos é ineficaz;
violência demais gera revolta. A violência pode destruir o poder antigo,
mas não pode criar autoridade que legitima o poder novo.
Logo, a violência é a base mais fraca possível para a construção de um
governo. É a arma favorita do impotente: os que não têm muito poder
tentam controlar os outros usando a violência. Ela raramente cria poder.
O terrorista que explode um prédio ou assassina um político dá ao
governo a desculpa que ele deseja para reduzir as liberdades individuais
e expandir sua esfera de influência. Quando um governo recorre à
violência, é porque sente que seu poder está se esvaindo. Os governos
que dominam pela violência são fracos e sem legitimidade.
A proposta do terrorismo político de esquerda na EU nos anos 70/80 (o Baader-Meinhof na Alemanha, as Brigadas Vermelhas na Itália, a Action Directe
na França, etc.) resultam duma época em que as massas estão totalmente
imersas no torpor ideológico capitalista e a crítica da ideologia já não
funciona mais, donde só o recurso ao real nu e cru da violência direta
consegue despertá-las.
A “maioria silenciosa” pós-política de hoje não é estúpida, mas cínica e
resignada. A limitação da pós-política é bem exemplificada não só pelo
sucesso do populismo direitista, cujos expoentes europeus foram, apesar
da impopularidade crescente, reeleitos “democraticamente”, a exemplo de
Tony Blair (eleito também várias vezes a pessoa mais impopular do Reino
Unido), Sarkozy, Berlusconi e outros.
Isto significa que o descontentamento geral não tem como encontrar uma
expressão política eficaz. Há algo muito errado aqui: o problema não é
que as pessoas “não sabem o que querem”, e sim que esta “resignação
cínica” as impede de agir, de modo que o resultado é a estranha lacuna
entre o que elas pensam e como agem, isto é, votam.
Portanto, a violência sistemática dos sucessivos, além de fracos e
ilegítimos (ou deslegitimados/desmoralizados) governos tucanos em Sampa é
o inevitável resultado catastrófico deste voto “cínico e resignado” da
maioria silenciosa pós-política paulistana.
É isso aí. Uma pílula amarga de engolir, contudo, também segundo Zizek, “a verdade é violenta”.
(1)Vivendo no fim dos tempos. São Paulo, Boitempo, 2012.
(2)In Hannah Arendt. Rio, Sobre a Violência, Civilização Brasileira, 2009.
*esquerdopata
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