Processo para incorporação da Venezuela surpreendeu Washington e direita sul-americana e abre novas perspectivas para região. Por isso, será bombardeado pela mídia
O Mercosul e o xadrez geopolítico das Américas
– 19 DE JULHO DE 2012
1. Não há como entender as peripécias da política sul-americana sem
levar em conta a política dos Estados Unidos para a América do Sul. Os
Estados Unidos ainda são o principal ator político na América do Sul e
pela descrição de seus objetivos devemos começar.
2. Na América do Sul, o objetivo estratégico central dos Estados Unidos,
que apesar do seu enfraquecimento continuam sendo a maior potência
política, militar, econômica e cultural do mundo, é incorporar todos os
países da região à sua economia. Esta incorporação econômica leva,
necessariamente, a um alinhamento político dos países mais fracos com os
Estados Unidos nas negociações e nas crises internacionais.
3. O instrumento tático norte-americano para atingir este objetivo
consiste em promover a adoção legal pelos países da América do Sul de
normas de liberalização a mais ampla do comércio, das finanças e
investimentos, dos serviços e de “proteção” à propriedade intelectual
através da negociação de acordos em nível regional e bilateral.
4. Este é um objetivo estratégico histórico e permanente. Uma de suas
primeiras manifestações ocorreu em 1889 na I Conferência Internacional
Americana, que se realizou em Washington, quando os EUA, já então a
primeira potência industrial do mundo, propuseram a negociação de um
acordo de livre comércio nas Américas e a adoção, por todos os países da
região, de uma mesma moeda, o dólar.
5. Outros momentos desta estratégia foram o acordo de livre comércio
EUA-Canadá; o NAFTA (Área de Livre Comércio da América do Norte,
incluindo além do Canadá, o México); a proposta de criação de uma Área
de Livre Comércio das Américas – ALCA e, finalmente, os acordos
bilaterais com o Chile, Peru, Colômbia e com os países da América
Central.
6. Neste contexto hemisférico, o principal objetivo norte-americano é
incorporar o Brasil e a Argentina, que são as duas principais economias
industriais da América do Sul, a este grande “conjunto” de áreas de
livre comércio bilaterais, onde as regras relativas ao movimento de
capitais, aos investimentos estrangeiros, aos serviços, às compras
governamentais, à propriedade intelectual, à defesa comercial, às
relações entre investidores estrangeiros e Estados seriam não somente as
mesmas como permitiriam a plena liberdade de ação para as megaempresas
multinacionais e reduziria ao mínimo a capacidade dos Estados nacionais
para promover o desenvolvimento, ainda que capitalista, de suas
sociedades e de proteger e desenvolver suas empresas (e capitais
nacionais) e sua força de trabalho.
7. A existência do Mercosul, cuja premissa é a preferência em seus
mercados às empresas (nacionais ou estrangeiras) instaladas nos
territórios da Argentina, do Brasil, do Paraguai e do Uruguai em relação
às empresas que se encontram fora desse território e que procura se
expandir na tentativa de construir uma área econômica comum, é
incompatível com objetivo norte-americano de liberalização geral do
comércio de bens, de serviços, de capitais etc que beneficia as suas
megaempresas, naturalmente muitíssimo mais poderosas do que as empresas
sul-americanas.
8. De outro lado, um objetivo (político e econômico) vital para os
Estados Unidos é assegurar o suprimento de energia para sua economia,
pois importam 11 milhões de barris diários de petróleo sendo que 20%
provêm do Golfo Pérsico, área de extraordinária instabilidade,
turbulência e conflito.
9. As empresas americanas foram responsáveis pelo desenvolvimento do
setor petrolífero na Venezuela a partir da década de 1920. De um lado, a
Venezuela tradicionalmente fornecia petróleo aos Estados Unidos e, de
outro lado, importava os equipamentos para a indústria de petróleo e os
bens de consumo para sua população, inclusive alimentos.
10. Com a eleição de Hugo Chávez, em 1998, suas decisões de reorientar a
política externa (econômica e política) da Venezuela em direção à
América do Sul (i.e. principal, mas não exclusivamente ao Brasil), assim
como de construir a infraestrutura e diversificar a economia agrícola e
industrial do país viriam a romper a profunda dependência da Venezuela
em relação aos Estados Unidos.
11. Esta decisão venezuelana, que atingiu frontalmente o objetivo
estratégico da política exterior americana de garantir o acesso a fontes
de energia, próximas e seguras, se tornou ainda mais importante no
momento em que a Venezuela passou a ser o maior país do mundo em
reservas de petróleo e em que a situação do Oriente Próximo é cada vez
mais volátil.
12. Desde então desencadeou-se uma campanha mundial e regional de mídia
contra o Presidente Chávez e a Venezuela, procurando demonizá-lo e
caracterizá-lo como ditador, autoritário, inimigo da liberdade de
imprensa, populista, demagogo etc. A Venezuela, segundo a mídia, não
seria uma democracia e para isto criaram uma “teoria” segundo a qual
ainda que um presidente tenha sido eleito democraticamente, ele, ao não
“governar democraticamente”, seria um ditador e, portanto, poderia ser
derrubado. Aliás, o golpe já havia sido tentado em 2002 e os primeiros
lideres a reconhecer o “governo” que emergiu desse golpe na Venezuela
foram George Walker Bush e José María Aznar.
13. À medida que o Presidente Chávez começou a diversificar suas
exportações de petróleo, notadamente para a China, substituiu a Rússia
no suprimento energético de Cuba e passou a apoiar governos
progressistas eleitos democraticamente, como os da Bolívia e do Equador,
empenhados em enfrentar as oligarquias da riqueza e do poder, os
ataques redobraram orquestrados em toda a mídia da região (e do mundo).
14. Isto apesar de não haver dúvida sobre a legitimidade democrática do
Presidente Chávez que, desde 1998, disputou doze eleições, que foram
todas consideradas livres e legítimas por observadores internacionais,
inclusive o Centro Carter, a ONU e a OEA.
15. Em 2001, a Venezuela apresentou, pela primeira vez, sua candidatura
ao Mercosul. Em 2006, após o término das negociações técnicas, o
Protocolo de adesão da Venezuela foi assinado pelos Presidentes Chávez,
Lula, Kirchner, Tabaré e Nicanor Duarte, do Paraguai, membro do Partido
Colorado. Começou então o processo de aprovação do ingresso da Venezuela
pelos Congressos dos quatro países, sob cerrada campanha da imprensa
conservadora, agora preocupada com o “futuro” do Mercosul que, sob a
influência de Chávez, poderia, segundo ela, “prejudicar” as negociações
internacionais do bloco etc. Aquela mesma imprensa que rotineiramente
criticava o Mercosul e que advogava a celebração de acordos de livre
comércio com os Estados Unidos, com a União Européia etc, se possível
até de forma bilateral, e que considerava a existência do Mercosul um
entrave à plena inserção dos países do bloco na economia mundial, passou
a se preocupar com a “sobrevivência” do bloco.
16. Aprovado pelos Congressos da Argentina, do Brasil, do Uruguai e da
Venezuela, o ingresso da Venezuela passou a depender da aprovação do
Senado paraguaio, dominado pelos partidos conservadores representantes
das oligarquias rurais e do “comércio informal”, que passou a exercer um
poder de veto, influenciado em parte pela sua oposição permanente ao
Presidente Fernando Lugo, contra quem tentou 23 processos de
“impeachment” desde a sua posse em 2008.
17. O ingresso da Venezuela no Mercosul teria quatro consequências:
dificultar a “remoção” do Presidente Chávez através de um golpe de
Estado; impedir a eventual reincorporação da Venezuela e de seu enorme
potencial econômico e energético à economia americana; fortalecer o
Mercosul e torná-lo ainda mais atraente à adesão dos demais países da
América do Sul; dificultar o projeto americano permanente de criação de
uma área de livre comércio na América Latina, agora pela eventual
“fusão” dos acordos bilaterais de comércio, de que o acordo da Aliança
do Pacifico é um exemplo.
18. Assim, a recusa do Senado paraguaio em aprovar o ingresso da
Venezuela no Mercosul tornou-se questão estratégica fundamental para a
política norte americana na América do Sul.
19. Os líderes políticos do Partido Colorado, que esteve no poder no
Paraguai durante sessenta anos, até a eleição de Lugo, e os do Partido
Liberal, que participava do governo Lugo, certamente avaliaram que as
sanções contra o Paraguai em decorrência do impedimento de Lugo, seriam
principalmente políticas, e não econômicas, limitando-se a não poder o
Paraguai participar de reuniões de Presidentes e de Ministros do bloco.
Feita esta avaliação, desfecharam o golpe. Primeiro, o Partido Liberal
deixou o governo e aliou-se aos Colorados e à União Nacional dos
Cidadãos Éticos – UNACE e aprovaram, a toque de caixa, em uma sessão,
uma resolução que consagrou um rito super-sumário de “impeachment”.
Assim, ignoraram o Artigo 17 da Constituição paraguaia que determina que
“no processo penal, ou em qualquer outro do qual possa derivar pena ou
sanção, toda pessoa tem direito a dispor das cópias, meios e prazos
indispensáveis para apresentação de sua defesa, e a poder oferecer,
praticar, controlar e impugnar provas”, e o artigo 16 que afirma que o
direito de defesa das pessoas é inviolável.
20. Em 2003, o processo de impedimento contra o Presidente Macchi, que
não foi aprovado, levou cerca de 3 meses enquanto o processo contra
Fernando Lugo foi iniciado e encerrado em cerca de 36 horas. O pedido de
revisão de constitucionalidade apresentado pelo Presidente Lugo junto à
Corte Suprema de Justiça do Paraguai sequer foi examinado, tendo sido
rejeitado in limine.
21. O processo de impedimento do Presidente Fernando Lugo foi
considerado golpe por todos os Estados da América do Sul e de acordo com
o Compromisso Democrático do Mercosul o Paraguai foi suspenso da Unasur
e do Mercosul, sem que os neogolpistas manifestassem qualquer
consideração pelas gestões dos Chanceleres da UNASUR, que receberam,
aliás, com arrogância.
22. Em consequência da suspensão paraguaia, foi possível e legal para os
governos da Argentina, do Brasil e do Uruguai aprovarem o ingresso da
Venezuela no Mercosul a partir de 31 de julho próximo. Acontecimento que
nem os neogolpistas nem seus admiradores mais fervorosos – EUA,
Espanha, Vaticano, Alemanha, os primeiros a reconhecer o governo ilegal
de Franco – parecem ter previsto.
23. Diante desta evolução inesperada, toda a imprensa conservadora dos
três países, e a do Paraguai, e os líderes e partidos conservadores da
região, partiram em socorro dos neogolpistas com toda sorte de
argumentos, proclamando a ilegalidade da suspensão do Paraguai (e,
portanto, afirmando a legalidade do golpe) e a inclusão da Venezuela, já
que a suspensão do Paraguai teria sido ilegal.
24. Agora, o Paraguai procura obter uma decisão do Tribunal Permanente
de Revisão do Mercosul sobre a legalidade de sua suspensão do Mercosul
enquanto, no Brasil, o líder do PSDB anuncia que recorrerá à justiça
brasileira sobre a legalidade da suspensão do Paraguai e do ingresso da
Venezuela.
25. A política externa norte-americana na América do Sul sofreu as
consequências totalmente inesperadas da pressa dos neogolpistas
paraguaios em assumir o poder, com tamanha voracidade que não podiam
aguardar até abril de 2013, quando serão realizadas as eleições, e agora
articula todos os seus aliados para fazer reverter a decisão de
ingresso da Venezuela.
26. Na realidade, a questão do Paraguai é a questão da Venezuela, da
disputa por influência econômica e política na América do Sul e de seu
futuro como região soberana e desenvolvida.
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