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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

segunda-feira, julho 23, 2012

China propõe aliança estratégica ao Mercosul: um dragão no quintal

 

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Raúl Zibechi
A crise política no Paraguai e suas repercussões na região deixaram a visita do primeiro-ministro chinês, Wen Jiabao, e a renúncia no principal cargo do Mercosul em um segundo plano da agenda de notícias. A China mostrou que está disposta a jogar pesado, inclusive na principal área de influência dos Estados Unidos.
A polêmica após o golpe no Paraguai, a suspensão do país do Mercosul e o ingresso da Venezuela não conseguem disfarçar as dificuldades do bloco, aflito pelas consequências da crise global e a ascensão da China como potência global. A aliança está parada porque o que convém para uns prejudica outros.
A expressão das dificuldades foi a demissão do embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, secretário geral do Mercosul, na recente cúpula em Mendoza. Em sua carta de despedida trazia uma análise lúcida da realidade atual do bloco.
Observa-se que a crise econômica na Europa e EUA e a ascensão da China geram um enorme fluxo de capital para o sul, que "corroi as relações intra-Mercosul, base principal do processo de integração". A desindustrialização, diz ele, é uma das piores conseqüências e deve ser tratada através dos recursos da exportação de commodities.
Expansão gradual
Em um dos parágrafos mais polêmicos, Pinheiro disse que a Unasul "não pode ser a pedra fundamental para a construção do bloco econômico na América do Sul" porque o Chile, Colômbia e Peru assinaram Tratados de Livre Comércio com os Estados Unidos que impossibilitam a construção de políticas regionais de promoção do desenvolvimento.
Assim, acredita que o bloco regional deve ser formado "a partir da expansão gradual do Mercosul", incluindo Venezuela, Equador, Bolívia, Suriname e Guiana. O último deve ter condições de entrada especiais por conta de seu baixo nível de desenvolvimento e interesse político que têm para a região.
Para avançar, diz o embaixador, o bloco deve aumentar de forma significativa a coordenação política e a cooperação econômica. “A característica central do Mercosul são as assimetrias”, que provocam tensões políticas. Aposta numa forte expansão dos recursos do Fundo para a Convergência Estrutural, para favorecer os menores, que atualmente conta com apenas 100 milhões de dólares anuais.
Talvez o momento mais brilhante de sua carta seja o parágrafo 34: "Em um mundo multipolar em crise, com grandes mudanças no poder, não é de interesse de nenhum bloco e de nenhuma grande potência a criação ou fortalecimento de um novo bloco de Estados, especialmente se forem periféricos. Qualquer grande potência considera mais apropriado negociar acordos com os Estados individualmente, especialmente se eles são subdesenvolvidos, mais fracos econômica e politicamente".
Apenas os membros do Mercosul estão interessados ​​em seu bloco. No entanto, quando foi criado em 1991 não foi projetado como um organismo para apoiar o desenvolvimento, mas como uma união aduaneira para promover o livre comércio. A proposta de Pinheiro é que ele se torne capaz de promover um desenvolvimento regional harmonioso e equilibrado, eliminando assimetrias e construindo uma legislação comum de forma gradual.
Esta mudança é necessária porque as respostas dos países industrializados para a crise são “uma verdadeira suspensão, na prática, dos acordos da OMC negociados na época da hegemonia do pensamento neoliberal. Se o Mercosul não adotar essas medidas, vai sobreviver, mas sempre manco, e não se transformará em um bloco de países capazes de defender e promover os seus interesses neste novo mundo que emergirá da crise que vivemos”. O diagnóstico feito por um dos principais intelectuais do Brasil sugere que o mundo está entrando em um período de crescente protecionismo, daí a necessidade de formar fortes blocos comerciais internos.
China se anima
Wen Jiabao, primeiro-ministro chinês, visitou a região quando ocorreu o golpe no Paraguai. O ponto alto da sua visita ao Brasil, Uruguai e Argentina foi a videoconferência realizada de Buenos Aires na segunda-feira, 25 de junho, com Dilma Rousseff, Cristina Fernandez e José Mujica.
De acordo com a agência Xinhua China, o primeiro-ministro fez três propostas: fortalecer a confiança mútua e a comunicação estratégica com o Mercosul; duplicar o comércio para 2016, chegando a 200 bilhões de dólares; aumentar investimentos e cooperação financeira e tecnológica, promovendo as relações bilaterais no domínio da educação e cultura (Xinghua, 25 de junho de 2012).
A proposta de Wen Jiabao foi interpretada por seus interlocutores como o que realmente é: uma grande aliança estratégica que inclui também um Tratado de Livre Comércio China-Mercosul. A destacar que o Paraguai deveria ser suspenso do Mercosul, uma vez que não tem relações com a China. Dois dias depois, deu uma palestra principal da CEPAL, em Santiago, Chile.
Sua proposta dirigida a América Latina e Caribe consiste em “combater o protecionismo”, “aprofundar a cooperação estratégica” e abrir novos mercados com o objetivo de que o intercâmbio comercial bilateral “supere os 400 bilhões de dólares nos próximos cinco anos” (Xinghua, 26 de junho de 2012). Ele propôs uma cooperação em que a China dará uma contribuição inicial de 5 bilhões de dólares e uma linha de crédito de 10 bilhões, do Banco de Desenvolvimento da China, para a construção de infraestruturas.
Também propôs uma ampla cooperação agrícola e estabelecimento de um mecanismo de reserva alimentar de emergência, de 500 mil toneladas, destinadas a contingências naturais, incluindo a instalação de centros de pesquisas e desenvolvimento em ciência e tecnologia agrícolas.
A oferta parece tentadora no momento em que o Mercosul atravessa grandes dificuldades. A CEPAL elaborou um documento chamado “Diálogos e cooperações aos novos desafios mundiais”, que analisa as possibilidades que se abrem na região para a ascensão da China. Alicia Barcenas, Secretária Executiva da CEPAL, disse no prefácio que a região está enfrentando uma oportunidade histórica de dar um salto em inovação, infra-estrutura e recursos humanos, ou "traduzir os rendimentos dos recursos naturais em várias formas de capital humano, físico e institucional. "
Para dar este salto deve atrair investimento direto da China, que lhe permite diversificar as exportações. Das 40 seções incluídas no documento, uma deve ser especialmente atendida com a participação dos países da América do Sul: em 2030 dois terços da população de classe média vai viver na região da Ásia-Pacífico, em comparação com apenas 21% na Europa e América do Norte.
Consequentemente, a classe média asiática se transformará em “mercado chave para alimentos, confecções de maior qualidade, turismo, remédios, serviços médicos, varejo e artigos de luxo”, o que permitirá que a América Latina diversifique suas exportações e lhes some valor agregado. Acrescenta que a internacionalização do yuan pode beneficiar a região e que a China se tornou seu segundo parceiro comercial.
Por una agenda regional
Dentre as constatações, destacou que a ascensão da China para a região da América do Sul pode ampliar os ciclos favoráveis ​​de comércio que tem vivido desde 2003. “Se não se aproveitar agora, poderá acentuar o processo de reprimarização da exportação, estabelecendo modalidades renovadas do vínculo centro-periferia”.
A CEPAL aponta a necessidade de estabelecer uma "agenda regional de prioridades sincronizadas", que supere as iniciativas unilaterais. Em outras palavras, o que importa é o que ele chama de "desafio interno". Neste ponto decisivo, a análise de Samuel Pinheiro e da CEPAL coincidem plenamente. No entanto, a guerra comercial entre os membros do Mercosul continua sendo um fator desestabilizador.
Muitas vezes, as divisões vão da escala econômica à política. A entrada da Venezuela decidida na cúpula de Mendoza provocou reações encontradas. É o tipo de problema referido por Pinheiro: falta de confiança, falta de visão estratégica, domínio das questões locais sobre as gerais e do curto prazo sobre o longo, além de incapacidade em compreender as mudanças globais. Em outras palavras, é a prevalência de "politicagem". O que está em jogo é muito mais importante e nem todos parecem entender.
Raul Zibechi, jornalista uruguaio, é docente e pesquisador na Multiversidade Franciscana da América Latina, e assessor de vários grupos.
Tradução: Daniela Mouro, Correio da Cidadania.
Retirado de América Latina en Movimiento.
*GilsonSampaio

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