Pedro Abramovay: “Usuário pobre está sendo tratado como traficante”
Felipe Prestes no SUL21
O advogado Pedro Abramovay foi
secretário nacional de Justiça durante o Governo Lula, mas sua atuação
chamou atenção do grande público no início do Governo Dilma. Convidado
pela presidenta para ocupar a Secretaria Nacional de Políticas sobre
Drogas, ele foi demitido algumas semanas depois, após o jornal O Globo
ter publicado uma entrevista na qual ele teria defendido penas
alternativas para pequenos traficantes. “Na entrevista eu não usei o
termo “pequenos traficantes”, porque não é disto que estamos falando.
Estamos falando muito mais de usuários que de traficantes. Não é uma
fronteira muito clara, mas estamos falando, sobretudo, de usuários”,
explica.
Agora, Abramovay
continua defendendo mudanças na legislação antidrogas do país à frente
do projeto Banco de Injustiças, que tem como objetivo mostrar que
muitos usuários têm sido classificados como traficantes e presos
equivocadamente. “O usuário pobre está sendo classificado como
traficante e isto é uma injustiça brutal”.
O Sul21
conversou com o advogado durante o Fórum Brasileiro de Segurança
Pública, realizado em Porto Alegre na semana passada. Abramovay falou
sobre vários temas relacionados às drogas, como a proposta de José
Mujica, de que o governo uruguaio plante maconha e forneça determinadas
quantidades aos usuários.
“Estamos em uma política de produção e reprodução da dor e do sofrimento. É uma política que não soluciona nenhum dos problemas que a droga causa”
Sul21 – Há organizações,
o Banco de Injustiças entre elas, apontando que a nova legislação
sobre drogas tem causado uma série de situações injustas. Que situações
são estas?
Pedro Abramovay –
A lei de 2006 disse que não cabe prisão para o consumidor e determinou
penas altas para o traficante. Mas como ela não define quem é o
consumidor e quem é o traficante, tem uma área cinza entre o consumidor
e o traficante – que vai desde o consumidor até a pessoa que,
eventualmente, vendeu droga para sustentar seu uso – que passou a ir
para a cadeia. Se a gente olhar quem está sendo preso no Brasil hoje,
60% eram réus primários, com pequeníssimas quantidades, estavam
sozinhos quando presos e desarmados. Este não é o perfil do traficante,
é um perfil muito mais próximo do usuário. Só que são pessoas pobres –
80% destas pessoas só tinha até 1º grau completo. O usuário pobre está
sendo classificado como traficante e isto é uma injustiça brutal.
Sul21 – O senhor falou
na palestra sobre uma série de arbitrariedades que estariam sendo
cometidas em nome da Guerra às Drogas. Como está ocorrendo isto?
Pedro Abramovay –
A lei de drogas fala que a pessoa tem que esperar o julgamento presa.
Então, se você mata alguém, pode esperar em liberdade, mas se você é
acusado de tráfico de drogas você tem que ficar preso até ser julgado. O
Supremo já disse que isto é inconstitucional, mas muitos juízes
continuam descumprindo esta decisão. No Banco de Injustiças, há o caso
de uma senhora de 70 anos que foi presa, porque a polícia chegou na
casa dela e encontrou crack que era do filho dela. Ela ficou três meses
na prisão, porque tinha que aguardar julgamento, até perceberem que
não tinha nada a ver com aquilo. Quem devolve este tempo de vida para
ela? Ela ficou deprimida, foi internada. Este tipo de injustiça não é
pontual. Está acontecendo o tempo inteiro, com pessoas pobres,
sobretudo. Estamos em uma política de produção e reprodução da dor e do
sofrimento. É uma política que não soluciona nenhum dos problemas que a
droga causa, que são muitos, e agrava este problema. A gente precisa
sair disto, precisa construir uma política que solucione problemas.
Sul21 – Então, quando o
senhor deu aquela declaração que gerou polêmica, de que pequenos
traficantes deveriam ter penas alternativas, não se referia a pequenos
traficantes, mas a pessoas que, muitas vezes, estão sendo acusadas de
forma equivocada.
Pedro Abramovay – Na entrevista a O Globo
eu não usei o termo “pequenos traficantes”, porque não é disto que
estamos falando. Estamos falando muito mais de usuários que de
traficantes. Não é uma fronteira muito clara, mas estamos falando,
sobretudo, de usuários. A gente está, sim, prendendo usuários no Brasil.
A gente precisa desarmar o que montamos para nós mesmos.
Sul21 – Que efeito traz para estes usuários pobres estarem indo para a cadeia?
Pedro Abramovay –
Tem uma pesquisa feita em São Paulo que mostra que, destas pessoas que
estão indo presas, 62% tinham emprego e 9% tinham estudado. Estamos
falando de pessoas produtivas, de alguma maneira, que a gente retira da
sociedade, coloca na prisão e devolve para a sociedade com ligação com
o crime organizado, com estigma de criminoso, que ninguém vai
empregar. Então, a gente pega pessoas que não são criminosas e devolve
para a sociedade criminosas. Não me parece um modelo adequado.
Sul21 – Quais poderiam ser as penas alternativas?
Pedro Abramovay –
Podem ser diversas. Tem que dosar a partir de qual seja a conduta. No
caso do usuário, o que a gente propõe não é nem que tenha pena
alternativa, mas que sejam medidas administrativas, que podem ser desde
advertência, frequentar um curso. Podem ser várias medidas, mas que
não passem pelo sistema penal, porque o sistema penal impede o
tratamento. Quando você diz que alguma coisa é crime, a primeira pessoa
que vai olhar o usuário é o policial, não é um médico, não é uma
assistente social. Enquanto for o policial, a saúde não entra.
Sul21 – As pessoas refutam o tratamento por medo?
Pedro Abramovay – Claro, o próprio médico também fica com uma aflição. Ele não é preparado para lidar com criminosos, mas com doentes.
“Os indicadores da guerra às drogas são apreensões, prisões, mortes de traficantes. Se não significam que o consumo e a violência estão caindo, não são indicadores de sucesso, mas de fracasso”
Sul21 – A comissão de juristas que discutiu o novo Código Penal previu a descriminalização do consumo de drogas.
Pedro Abramovay –
Acho um grande passo. Mas acho que Portugal ensina para a gente que,
além de não criminalizar, tem que ficar muito claro que aquela pessoa
não vai para o sistema penal. Não é o juiz que tem que cuidar do
usuário. Ninguém é a favor de legalizar passar (um carro) no
sinal vermelho, mas ninguém acha que isto tem que ser crime, que o
Ministério Público tem que fazer uma denúncia e que um juiz tem que
condenar esse infrator. Não é esta a estrutura, é uma estrutura
administrativa. O que a gente quer é que a pessoa que seja pega com
drogas vá para uma comissão de especialistas que pense qual a melhor
alternativa para ela, se uma advertência, uma multa, um tratamento, e
construir uma saída, que não seja a saída criminal. Isto para pessoas
que sejam pegas com uma quantidade abaixo de um determinado valor fixo,
para que não se tenha a possibilidade de se cometer as arbitrariedades
que são cometidas hoje – um modelo semelhante ao que é feito em
Portugal.
Sul21 – O senhor critica que os resultados da política de drogas sejam mais prisões e apreensões. Por quê?
Pedro Abramovay –
Uma política consistente de drogas tem que ter como objetivos a
redução da violência e acesso à saúde, que as pessoas tenham uma vida
mais saudável. Como a repressão e a Guerra às Drogas nunca conseguiram
reduzir o consumo nem a violência, os indicadores que se criam são
indicadores que não dizem nada. São apreensões, prisões, mortes de
traficantes. Se estes indicadores não significam que o consumo e a
violência estão caindo, não são indicadores de sucesso, mas de
fracasso. Significa que está se trabalhando muito, gastando muito
dinheiro e muita energia para não alcançar os objetivos mais
importantes.
Sul21 – O indicador deveria ser, por exemplo, quantas pessoas foram ressocializadas?
Pedro Abramovay –
Mortes por overdose, quanto é? Em Portugal, ao descriminalizar,
despencou o número de mortes por overdose. Este é um indicador de
sucesso. As pessoas muitas vezes imaginam que a descriminalização
aumenta o consumo, mas foi feita uma pesquisa por um instituto inglês
em 21 países que tiveram medidas de flexibilização da legislação. Em
nenhum deles aumentou o consumo. Em alguns até caiu. Não se diminuiu o
consumo de nenhuma droga ilícita por meio da repressão. A única droga
que se conseguiu diminuir o consumo por meio de atitude do Estado foi
uma droga lícita: o tabaco. O caso do tabaco mostra que é possível
reduzir consumo, mas se faz isto com regulação, não com cadeia. Com a
criminalização, todo mundo tem acesso à droga, mas você não consegue
tratar ninguém e prende pessoas que não cometeram violência contra
ninguém.
Sul21 – Num segundo momento, o senhor defende a legalização do comércio, ou o plantio (de cannabis) em casa?
Pedro Abramovay – O
tema do plantio em casa sem dúvida deve ser discutido. Há experiências
bastante bem-sucedidas na Espanha. Acho que temos que debater isto no
Brasil. A legalização é algo que nenhum país fez. Eu me sinto mais
confortável em falar sobre a descriminalização, que é um modelo que deu
certo onde tentaram, do que no modelo de legalização, que nunca
ninguém testou.
Sul21 – Na Holanda não foi testado?
Pedro Abramovay – Na Holanda não é legalizado, porque a venda é permitida em pequenas quantidades, mas a produção não é. Então, os coffee shops
compram ilicitamente a droga. Então, é um modelo que tem uma
hipocrisia. A impressão que eu tenho é que pior que a atual política (do Brasil)
não tem, uma política que não consegue frear o consumo e que causa
tantos danos. Tem coisas que claramente já deram certo, como a
descriminalização e o cultivo pessoal. Os outros passos têm que ser
debatidos com muito cuidado e com atenção às experiências que outros
países têm feito. Na Califórnia, por exemplo, se diz que foi
regularizada a maconha medicinal, mas existe um milhão de pacientes
cadastrados. A pessoa vai na farmácia, compra, e a sociedade
californiana não teve nenhum prejuízo com esta medida. A gente tem que
ter um debate baseado em dados concretos, na ciência, e não baseado na
ideologia, no medo, na raiva – em geral, o tema de drogas é debatido
assim. A gente quer debater como quem quer resolver o problema, e não
como quem quer fazer barulho, dar a impressão de que está dando uma
resposta sem, até agora, ter chegado perto de solucionar o problema.
“Até pouco tempo atrás, o tema das drogas no Brasil estava sob a guarda dos militares. Hoje, a Secretaria Nacional de Política sobre Drogas está no Ministério da Justiça. É um avanço extraordinário”
Sul21 – Como o senhor vê
a proposta do presidente José Mujica, do Uruguai, de que o Estado
plante maconha e de que isto separaria o usuário de maconha das drogas
mais pesadas?
Pedro Abramovay – Nesta
lógica de tanto esgarçamento da atual política é o momento de testar
novas coisas, porque insistir no erro a gente sabe que não funciona. O
caso do Uruguai tem algumas questões. Primeiro: a gente precisa
descriminalizar não só a maconha, mas todas as drogas. Quanto maior
efeito da droga sobre a pessoa, mais próxima de um doente esta pessoa
vai estar e mais atenção de saúde, e não de prisão, esta pessoa deve
ter. Então, não é que a droga mais grave deve ser criminalizada e a
mais leve não. A gente não pode tratar nenhum usuário como criminoso.
Do ponto de vista da legalização, muitas pessoas dizem que a maconha é a
porta de entrada para outras drogas. Tem um estudo neozelandês que
afirma isto, mas o próprio autor diz que a maconha é a porta de entrada
porque a gente força os jovens a comprarem maconha da mesma pessoa que
vende cocaína, que vende crack. Quando você vai no supermercado
comprar arroz, você acaba comprando outras coisas. Então, o que torna a
maconha uma porta de entrada é o fato de ela ser considerada ilícita.
Acho que, de alguma maneira, separar a maconha — que é a droga
responsável, de longe, pela maior parte do consumo de drogas ilícitas —
é afastar os jovens do crime. Então, acho que tem algum sentido nisto.
São experiências, inovações que a gente tem que olhar com calma,
avaliar, ter a serenidade de ver quais são os resultados concretos
disto, sem nenhum clima de oba-oba e nem de cegueira, como é o clima
com que se convive com a política atual.
Sul21 – Qual é a visão do senhor sobre a internação compulsória dos dependentes químicos?
Pedro Abramovay –
Eu não sou médico, mas li muitos artigos científicos sobre isto e
vários mostram que a eficiência da internação compulsória é baixíssima,
de menos de 10%. É claro que existem situações absolutamente
excepcionais – menos de 5% dos casos – em que a pessoa pode ser
avaliada como psicopata e não tem juízo sobre a situação e pode se
matar, ou matar outra pessoa. Mas estes casos são exceção até no caso
do crack. Na grande maioria dos casos, as pessoas têm, sim, total
consciência nos momentos de abstinência e podem decidir por tratamento.
Quando elas tomam esta decisão, a eficiência do tratamento é muito
maior. E o tratamento ambulatorial e a rua têm eficiência muito maior
que a internação, porque a relação da droga com a dependência não está
na própria substância. O que faz a pessoa se tornar dependente é a
relação da pessoa com a droga dentro de uma circunstância social
específica. Então, se a pessoa está desempregada, vê naquilo uma muleta
para seus problemas ou algo assim, a chance dela se tornar dependente é
muito maior. Quando você interna a pessoa, desintoxica ela, mas
devolve para o meio que gerou a dependência, ela vai voltar a ser
dependente. Por isto é que a maioria dos casos de internação não
funciona. Quando você consegue tratar a pessoa no meio em que ela vive e
fazer ela lidar com os problemas que levaram à dependência, aí a
pessoa consegue sair da tragédia das drogas.
Sul21 – Como o senhor avalia a atual política do Governo Federal na questão de drogas?
Pedro Abramovay –
Acho que o Governo Federal avançou em várias áreas no tema das drogas.
Até pouco tempo atrás, o porta-voz do tema das drogas no Brasil era um
general, o tema estava sob a guarda dos militares. Hoje, a Secretaria
Nacional de Política sobre Drogas está no Ministério da Justiça e o
grande porta-voz do plano tem sido o ministro da Saúde. É um avanço
extraordinário que a gente possa ter este olhar sobre o tema e não o
olhar de guerra. O Plano de Enfrentamento ao Crack pela primeira vez dá
dinheiro para o tratamento ambulatorial, mas também dá dinheiro para a
internação, e aí é uma contradição. Claro, há momentos em que você
precisa de internação, mas são casos mais raros. Mas como não é o
Governo Federal que executa, lá na ponta, nos municípios, você pode
transformar o consultório de rua em uma carrocinha de pegar usuários
pobres e levar para esconder na internação. Então, a gente tem quer
vigiar muito de perto o plano para apoiar o que ele tem de muito
positivo, que é incentivar o tratamento de rua, incentivar o olhar de
saúde, e não deixar que setores mais conservadores se apropriem deste
plano pelo lado da internação compulsória, não respaldada na ciência.
Sul21 – Em que pé está o debate sobre drogas neste momento no país? Avançamos?
Pedro Abramovay –
Acho que pela primeira vez a gente tem o debate aparecendo de maneira
séria. Agora, é possível debater o tema. Antigamente, qualquer pessoa
que levantasse essas questões era taxada de maluca. Agora, é um tema
sério, há grandes personalidades que discutem este tema, apresentam
suas propostas. Acho que é um cenário positivo. Ainda está longe de ser
um tema discutido sem preconceito, mas acho que a gente pode
finalmente discutir o tema com base em dados, em pesquisas, e não só em
ideologia e impressões.
*Turquinho
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