Documento que registra extermínio de índios é resgatado após décadas desaparecido
Relatório
de mais de 7 mil páginas que relatam massacres e torturas de índios no
interior do país, dado como queimado num incêndio, é encontrado
intacto 45 anos depois
A expedição percorreu mais de 16 mil quilômetros e visitou mais de 130 postos indígenas onde foram constatados inúmeros crimes e violações aos direitos humanos. O governo ignorou pedido do Relatório Figueiredo para demitir 33 agentes públicos e suspender 17 |
Depois de 45 anos
desaparecido, um dos documentos mais importantes produzidos pelo Estado
brasileiro no último século, o chamado Relatório Figueiredo, que
apurou matanças de tribos inteiras, torturas e toda sorte de crueldades
praticadas contra indígenas no país – principalmente por
latifundiários e funcionários do extinto Serviço de Proteção ao Índio
(SPI) –, ressurge quase intacto. Supostamente eliminado em um incêndio
no Ministério da Agricultura, ele foi encontrado recentemente no Museu
do Índio, no Rio, com mais de 7 mil páginas preservadas e contendo 29
dos 30 tomos originais.
Em uma das inúmeras passagens brutais do texto, a que o Estado de Minas
teve acesso e publica na data em que se comemora o Dia do Índio, um
instrumento de tortura apontado como o mais comum nos postos do SPI à
época, chamado “tronco”, é descrito da seguinte maneira: “Consistia na
trituração dos tornozelos das vítimas, colocadas entre duas estacas
enterradas juntas em um ângulo agudo. As extremidades, ligadas por
roldanas, eram aproximadas lenta e continuamente”.
Entre
denúncias de caçadas humanas promovidas com metralhadoras e dinamites
atiradas de aviões, inoculações propositais de varíola em povoados
isolados e doações de açúcar misturado a estricnina, o texto redigido
pelo então procurador Jader de Figueiredo Correia ressuscita
incontáveis fantasmas e pode se tornar agora um trunfo para a Comissão
da Verdade, que apura violações de direitos humanos cometidas entre 1946
e 1988.
A investigação, feita
em 1967, em plena ditadura, a pedido do então ministro do Interior,
Albuquerque Lima, tendo como base comissões parlamentares de inquérito
de 1962 e 1963 e denúncias posteriores de deputados, foi o resultado de
uma expedição que percorreu mais de 16 mil quilômetros, entrevistou
dezenas de agentes do SPI e visitou mais de 130 postos indígenas. Jader
de Figueiredo e sua equipe constataram diversos crimes, propuseram a
investigação de muitos mais que lhes foram relatados pelos índios, se
chocaram com a crueldade e bestialidade de agentes públicos. Ao final,
no entanto, o Brasil foi privado da possibilidade de fazer justiça nos
anos seguintes. Albuquerque Lima chegou a recomendar a demissão de 33
pessoas do SPI e a suspensão de 17, mas, posteriormente, muitas delas
foram inocentadas pela Justiça.
Os
únicos registros do relatório disponíveis até hoje eram os presentes
em reportagens publicadas na época de sua conclusão, quando houve uma
entrevista coletiva no Ministério do Interior, em março de 1968, para
detalhar o que havia sido constatado por Jader e sua equipe. A
entrevista teve repercussão internacional, merecendo publicação
inclusive em jornais como o New York Times. No entanto, tempos
depois da entrevista, o que ocorreu não foi a continuação das
investigações, mas a exoneração de funcionários que haviam participado
do trabalho. Quem não foi demitido foi trocado de função, numa
tentativa de esconder o acontecido. Em 13 de dezembro do mesmo ano o
governo militar baixou o Ato Institucional nº 5, restringindo
liberdades civis e tornando o regime autoritário mais rígido.
O
vice-presidente do grupo Tortura Nunca Mais de São Paulo e coordenador
do Projeto Armazém Memória, Marcelo Zelic, foi quem descobriu o
conteúdo do documento até então guardado entre 50 caixas de papelada no
Rio de Janeiro. Ele afirma que o Relatório Figueiredo já havia se
tornado motivo de preocupação para setores que possivelmente estão
envolvidos nas denúncias da época antes de ser achado. “Já tem gente
que está tentando desqualificar o relatório, acho que por um forte medo
de ele aparecer, as pessoas estão criticando o documento sem ter
lido”, acusa.
Suplícios
O
contexto desenvolvimentista da época e o ímpeto por um Brasil moderno
encontravam entraves nas aldeias. O documento relata que índios eram
tratados como animais e sem a menor compaixão. “É espantoso que existe
na estrutura administrativa do país repartição que haja descido a tão
baixos padrões de decência. E que haja funcionários públicos cuja
bestialidade tenha atingido tais requintes de perversidade. Venderam-se
crianças indefesas para servir aos instintos de indivíduos desumanos.
Torturas contra crianças e adultos em monstruosos e lentos suplícios”,
lamentava Figueiredo. Em outro trecho contundente, o relatório cita
chacinas no Maranhão, em que “fazendeiros liquidaram toda uma nação”.
Uma CPI chegou a ser instaurada em 1968, mas o país jamais julgou os
algozes que ceifaram tribos inteiras e culturas milenares.
Nenhum comentário:
Postar um comentário