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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

segunda-feira, junho 17, 2013

A mídia burguesa, o transporte público e os escravos da casa


Por Carlos Everardo Silva

O Brasil está vivendo um momento de extrema importância para as lutas populares. Uma onda de cidadania tomou conta do país. Não a cidadania em seu sentido burguês, mero sinônimo de conjunto de direitos e deveres. Mas a cidadania plena, que não se limita a agir dentro dos limites da ordem estabelecida, que vai além, questionando o próprio sistema. A série de protestos contra o aumento dos preços das passagens nos faz lembrar dos conflitos sociais que há alguns anos vem se espalhando pelo mundo.

A mídia capitalista começou por menosprezar o movimento de protestos contra o aumento das passagens, na tentativa de evitar que a população se sentisse envolvida pelas lutas sociais. Mas o movimento não podia ser ocultado por muito tempo. Rapidamente ele se espalhou pelo país. Inspirados pelas revoltas que se desenvolvem pelo mundo, os manifestantes ocuparam as ruas com gritos de protestos, faixas, cartazes e ações diretas baseadas em desobediência civil.

Como já não podia esconder os protestos, a imprensa corporativa passou a lançar uma série de ataques aos manifestantes, na tentativa de demonizá-los. De fato, a mídia baseia suas atividades em três fundamentos: desinformação, mentira e criminalização. Para os barões midiáticos e seus jornalistas mercenários, tratava-se agora de lutar pela criminalização daqueles que lutam por seus direitos.

Quem acompanha jornais, portais e telejornais, tem visto a maneira imoral como a imprensa tem transmitido os protestos legítimos, tratados por ela como puro vandalismo de "jovens de classe média que não valem nem vinte centavos", nas palavras do capanga midiático Arnaldo Jabor.

É interessante notar como, de repente, as classes sociais passam a ter importância no discuso da direita quando o conceito serve aos seus interesses, como se a classe média também não sofresse com os males causados pelo sistema vigente. A verdade é que, para a direita, não faz qualquer sentido que pessoas com alguns poucos privilégios participem de ações em defesa dos interesses dos menos favorecidos. Para os conservadores e liberais, o egoísmo é o que move o ser humano. Essa é sua natureza. Logo, se alguém participa de algo, só pode estar agindo em favor de seus interesses mesquinhos. Não entra na cabeça da direita que o mundo não é um livro da Ayn Rand [1], que algumas pessoas são capazes inclusive de ir contra seus próprios interesses de classe para defender quem precisa urgentemente de ajuda.

Também é interessante notar como a mídia passou, da noite para o dia, a se preocupar com o patrimônio público, denunciando os supostos atos de vandalismo que ocorrem durante os protestos. Sim, a mesma mídia que apoiou o processo de privatizações do governo FHC. A mesma imprensa que defendeu e defende até hoje a venda de empresas públicas a preço de banana. Essa mídia, magicamente, passou a se preocupar com o patrimônio público. Não pode haver nada mais hipócrita.

Ver a mídia capitalista criticando a "destruição do patrimônio público" nos protestos contra o aumento das passagens é assistir a um show de piadas. 
Se tem uma coisa que nossa mídia não ajuda a preservar, é o nosso patrimônio público. Não caiam nessa. Nenhum possível dano ao patrimônio público resultado dos protestos chega sequer aos pés dos danos que os porcos donos das empresas de transporte causam ao povo. Deve haver apoio incondicional às manifestações.

Outra coisa me chamou bastante atenção. Ao assistir e ler sobre os conflitos entre policiais e manifestantes, me veio a mente um comentário atribuído ao grande revolucionário e ativista pelos direitos civis Malcolm X. Em seu comentário, Malcolm faz uma crítica arrasadora à minoria de afro-americanos que se comportavam como capangas da elite branca e endinheirada dos EUA, indo contra as lutas e interesses do movimento negro.

Malcolm compara tal situação com a época da escravidão. Segundo ele, os escravos se dividiam em duas categorias: os escravos da casa e os escravos do campo. Os primeiros possuíam algumas regalias. Não tinham que trabalhar o dia todo no campo. Estavam mais próximos de seus senhores. Enquanto os escravos do campo sofriam executando trabalho pesado, dormiam na senzala e não possuíam qualquer conforto, os da casa tinham acesso a algumas poucas migalhas. Sim, poucas. Mas suficientes para gerar neles a ilusão de que eram diferentes. O bastante para criar neles um sentimento de lealdade em relação aos seus donos.

Quando os escravos do campo armavam uma fuga, os escravos da casa se recusavam a participar da ação, porque simplesmente não viam motivos para abandonar seus “mestres”. “Por que fugir”? “Temos tudo aqui”. “O que pode ser melhor do que isso”? Na mente deles, pelo menos em comparação com a situação dos que trabalhavam no campo, suas vidas não eram tão ruins assim. Não se sentiam explorados. Alguns talvez até se sentissem parte da família de proprietários. Quando seus donos adoeciam, eles diziam: “nós estamos doente”. Eles não se viam como indivíduos, com personalidade, desejos e vontade própria. Se viam como uma extensão de seus senhores.

Malcolm termina dizendo que os afro-americanos capangas da burguesia branca eram os novos escravos da casa. Por se encontrarem em uma posição mais próxima de seus senhores, eles já não se viam mais como parte do movimento negro. Faziam o jogo dos opressores. Estavam felizes em atacar os seus próprios irmãos em defesa dos interesses da plutocracia.

Pois bem, os policiais são os nossos escravos da casa. Sim, eles fazem parte da massa explorada pela elite econômica corrupta e sua casta auxiliar, a burocracia estatal. Entretanto, por estarem mais próximos aos donos do poder. Por fazerem parte do Estado, acabam não se identificando com os escravos do campo, aquela parte da massa explorada que não está próxima dos “seus donos”. Eles recebem péssimos salários. Trabalham em condições precárias. Mas, por algum motivo, sentem prazer em obedecer às classes opressoras. Acham que não há nada melhor do que isso. Acreditam firmemente que defender os opressores é a coisa certa. São armas nas mãos das elites dominantes. Não querem se voltar contra seus senhores, porque pensam fazer parte da “família de proprietários”. Mas não fazem. Não, não fazem. São apenas idiotas úteis. Para os opressores, eles não passam de instrumentos descartáveis.

Mesmo assim, eles não acordam. Vão continuar a defender os exploradores. Só resta torcer para que um dia eles percebam que um escravo, mesmo que more na casa de seu senhor, continua sendo um escravo. Enquanto isso não ocorre, os escravos do campo, a imensa massa de trabalhadores explorados, devem vê-los como inimigos. Sim, eles são inimigos. Assassinos de seus próprios irmãos.  

Aos que acreditam que é possível construir um mundo melhor. Aos que, como eu, se posicionam ao lado das classes exploradas, não resta outra opção, a não ser o apoio incondicional ao movimento. Qualquer ação contra o sistema, por menor que seja, é válida. É o conjunto das lutas que determinará o resultado final. Devemos apoiar todas as reivindicações das lutas populares, mesmo que, para nós, tais reivindicações não pareçam de grande importância na luta contra o sistema capitalista e seu modelo político corrupto e burocratizado. Não sou eu nem você que decide quais lutas são importantes, é o próprio movimento, é a própria realidade social, como aparece aos olhos de quem analisa o mundo sem mistificações. 

[1] http://pt.wikipedia.org/wiki/Ayn_rand

Posted by
*centrodosocialismo 

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