Ode à baderna
Via CartaCapital
“Que
a violência policial contra os manifestantes venha do governo de São
Paulo, não causa espécie a ninguém. O PSDB é um partido de direita, o
governador Geraldo Alckmin é um numerário da Opus Dei, organização
católica de extrema-direita, e a PM de São Paulo é um substrato
intocável do aparato policial-militar herdado da ditadura. Os policiais
que tomaram o centro da cidade para espancar e prender manifestantes e
jornalistas são os cães de guarda desse sistema. Não há disfunção alguma
no que estão fazendo: eles existem, basicamente, para isso. Para tocar a
negrada a pau, para dar paz a Higienópolis e garantir a brisa fresca de
domingo nos Jardins. Dessa gente e de sua guarda pretoriana devem
cuidar, nas próximas eleições, o povo de São Paulo.”
Leandro Fortes
Nada mais assustador para um conservador do que a baderna
A
moçada parou São Paulo para reclamar do aumento da tarifa do transporte
público? O promotor mentecapto, parado no trânsito, pede a PM para
espancar e matar os manifestantes. Foto: Ninja
Um
dos discursos mais comuns à direita brasileira é esse: peçam o que
quiserem, digam o que quiserem, mas não façam baderna. E, sobretudo, não
atrapalhem o trânsito. Não por outra razão, qualquer cobertura da mídia
nacional sobre passeatas, manifestações e grandes movimentações de
massa acabam, sempre, em manchetes de trânsito. Os camponeses foram a
Brasília pedir reforma agrária? Atrapalharam o trânsito. As mulheres da
Marcha das Margaridas invadiram as Esplanada dos Ministérios para pedir
saúde e educação no campo? Provocaram engarrafamentos. A moçada parou
São Paulo para reclamar do aumento da tarifa do transporte público? O
promotor mentecapto, parado no trânsito, pede a PM para espancar e matar
os manifestantes. Afinal, o filhinho dele está na escola. Mas como
chegar para pegá-lo a tempo, se os bárbaros impedem o trânsito?
Quando,
além de parar o trânsito, os manifestantes fazem baderna, aí não! Aí já
é demais! Não pode ter baderna. Tem que ser como aquelas passeatas pela
paz na Zona Sul do Rio de Janeiro, todos de branco na Avenida
Atlântica, copos-de-leite às mãos, o trânsito compreensivelmente parado
para a procissão de cidadãos contritos. A polícia, claro, à distância,
com as sirenes reverencialmente desligadas. Tudo assim, sem baderna,
dentro da lei e da ordem. A manifestação do mundo ideal.
Pena
que para quem pega quatro conduções por dia e gasta em média quatro
horas dentro delas (ou esperando por elas) a realidade seja outra. No
mundo do transporte público não tem hakuna matata. O pau come no ponto,
no ônibus lotado, nas estações de trem e metrô diariamente conflagradas.
Para o usuário de transporte coletivo, todo dia tem confusão e baderna,
mas é difícil explicar isso para o mundo da Avenida Paulista. Para a
classe média bem motorizada, as demandas do transporte coletivo são
subterrâneas, confinadas a um universo específico sobre o qual só se tem
notícia quando motoristas e cobradores entram em greve. É o dia em que a
patroa de Higienópolis se inquieta porque a empregada vai chegar mais
tarde ou, horror dos horrores, nem vem trabalhar. Quem vai fazer almoço?
E os petizes, sob a guarda de quem ficarão no playground?
E, de repente, vem a baderna.
Multidões
de cidadãos, jovens, velhos, brancos, negros, empregadas, office-boys,
desempregados, professores, trabalhadores, trabalhadoras, desocupados.
Baderneiros. Quebram ônibus, depredam vidraças, picham paredes, revolvem
a cidade e deixam marcas no asfalto.
O horror, o horror!
Então,
todos se unem contra a baderna. Podem pedir o que quiserem, podem se
manifestar, cruzar as ruas com bandeiras, mas, por favor, não atrapalhem
o trânsito. Políticos de todos os matizes se unem para bradar: baderna,
não! Antigos militantes de esquerda que ainda acham um lindo momento
histórico as barricadas de Paris, em 1968, estão, ora vejam, revoltados
com a baderna. Pedras, paus, coquetéis molotov, é preciso conter os
bárbaros e acabar com a baderna. Não interessa se eles vivem em panelas
de pressão, amontoados em latas automotivas superlotadas, se ganham uma
miséria e, agora, terão que pagar mais 20 centavos pelo mesmo sofrimento
diário. O que importa é que eles, baderneiros, estão atrapalhando o
trânsito.
Então, a solução é descer a porrada.
Passar a borracha no lombo desses baderneiros, enfiar-lhes o cassetete
na cuca, tocar o gado revoltado para o corredor polonês.
Que
a violência policial contra os manifestantes venha do governo de São
Paulo, não causa espécie a ninguém. O PSDB é um partido de direita, o
governador Geraldo Alckmin é um numerário da Opus Dei, organização
católica de extrema-direita, e a PM de São Paulo é um substrato
intocável do aparato policial-militar herdado da ditadura. Os policiais
que tomaram o centro da cidade para espancar e prender manifestantes e
jornalistas são os cães de guarda desse sistema. Não há disfunção alguma
no que estão fazendo: eles existem, basicamente, para isso. Para tocar a
negrada a pau, para dar paz a Higienópolis e garantir a brisa fresca de
domingo nos Jardins. Dessa gente e de sua guarda pretoriana devem
cuidar, nas próximas eleições, o povo de São Paulo.
Mas,
onde está o PT? Onde está o prefeito Fernando Haddad, este que já
avisou, de Paris, pelo Twitter, que não irá “tolerar vandalismo”? Onde
estão os vereadores, deputados e senadores do partido que nasceu nas
monumentais greves do ABC paulista, em plena ditadura militar, que os
chamava, ora vejam, de baderneiros? Nada. Ninguém de braços dados para
enfrentar a tropa de choque. Todos quietinhos, com seus militantes
sempre tão subordinados, para saber o que vai sair no Jornal Nacional e
na Veja de domingo. Até lá, melhor deixar as barbas de molho. Para os
que ainda têm barba, claro.
Nessa vergonhosa
escalada de violência tocada pelo governo tucano de São Paulo, não podia
faltar, claro, o apoio da mídia. Não há manifestantes para a ela, mas
só baderneiros. Manifestantes são franceses, suecos, turcos, chineses.
No Brasil, são vândalos e desocupados interessados em depredar o
patrimônio público, como se a imprensa brasileira, hoje povoada de
engomadinhos formados em cursinhos de trainee, alguma vez tenha se
preocupado, de fato, com a segurança física dos ônibus usados pelos
pobres.
Perdão, gente indignada com os vândalos. Mas entre a hipocrisia e a baderna, eu fico, alegremente, com a segunda.
*GilsonSampaio
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