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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

sexta-feira, julho 18, 2014

a história que Israel não conta


Pois bem, na tarde da última sexta-feira o saldo de mortos estava 110 a 0 a favor de Israel. Mas passemos para a história de Gaza que, a esta altura, ninguém vai contar. Trata-se da terra. Os israelenses de Sderot estão recebendo tiros de rojões dos palestinos de Gaza, e agora os palestinos estão sendo bombardeados com bombas de fósforo e bombas de fragmentação pelos israelenses. É. Mas e como e por que, para início de conversa, há, atualmente, um milhão e meio de palestinos apertados naquela estreita Faixa de Gaza?
As famílias deles, sim, viveram ali, não eles, no que hoje há quem chame de Israel. E foram expulsas – e tiveram de fugir para não serem todos mortos – quando foi criado o Estado de Israel.
(Foto: Reprodução)
(Foto: Reprodução)
E – aqui, talvez, melhor respirar fundo antes de ler – o povo que vivia em Sederot, no início de 1948, não era israelense, mas árabe palestino. A vila palestina chamava-se Huj. Nunca foram inimigos de Israel. Dois anos antes de 1948, os árabes de Huj até deram abrigo e esconderam ali terroristas judeus do Haganah, perseguidos pelo exército britânico. Mas, quando o exército israelense voltou a Huj, em 31 de maio de 1948, expulsaram todos os árabes das vilas… para a Faixa de Gaza! Tornaram-se refugiados. David Ben Gurion (primeiro premiê de Israel) chamou a expulsão de “ação injusta e injustificada”. Pior, impossível. Os palestinos de Huj, hoje Sderot, nunca mais puderam voltar à terra deles.
E hoje, bem mais de 6 mil descendentes dos palestinos de Huj – atual Sderot – vivem na miséria de Gaza, entre os “terroristas” que Israel mente que estaria caçando, e os quais continuam a atirar contra o que foi Huj.
A história do direito de autodefesa de Israel é a história de sempre. Hoje, foi repetida e a ouvimos mais uma vez. E se a população de Londres estivesse sendo atacada como o povo de Israel? Não responderia? Ora, sim. Mas não há mais de um milhão de ex-moradores de Londres expulsos de suas casas e metidos em campos de refugiados, logo ali, numas poucas milhas quadradas cercadas, perto de Hastings!
A última vez em que se usou esse falso argumento foi em 2008, quando Israel invadiu Gaza e assassinou pelo menos 1.100 palestinos (1.100 mortos palestinos, 13 mortos israelenses). E se Dublin fosse atacada por foguetes – perguntou então o embaixador israelense? Mas, nos anos 1970, a cidade britânica de Crossmaglen, no norte da Irlanda, estava sendo atacada por foguetes da República da Irlanda – e nem por isso a Real Força Aérea britânica começou a bombardear Dublin em retaliação, matando mulheres e crianças irlandesas.
No Canadá em 2008, apoiadores de Israel repetiram esse argumento fraudulento: e se o povo de Vancouver ou Toronto ou Montreal fosse atacado com foguetes lançados dos subúrbios de suas próprias cidades? Como se sentiriam? Não. Os canadenses nunca expulsaram para campos de refugiados os habitantes originais dos bairros onde hoje vivem.
Passemos então para a Cisjordânia. Primeiro, Benjamin Netanyahu disse que não negociaria com o ‘presidente’ palestino Mahmoud Abbas, porque Abbas não representava também o Hamas. Depois, quando Abbas formou um governo de unidade, Netanyahu disse que não negociaria com Abbas, porque ‘unificara’ seu governo com o “terrorista” Hamas. Agora, está dizendo que só falará com Abbas se romper com o Hamas – quando, então, rompido, Abbas não representará o Hamas…
Enquanto isto, o grande filósofo da esquerda israelense, Uri Avnery – 90 anos e, felizmente, cheio de energia – ataca a mais recente obsessão de seu país: a ameaça de que o ISIS se mova para oeste, lá do seu ‘califato’ iraquiano-sírio, e aporte à margem leste do rio Jordão.
“E Netanyahu disse”, segundo Avnery, que “se não forem detidos por uma guarnição permanente de Israel no local (no rio Jordão), logo mostrarão a cara nos portões de Tel Aviv”. A verdade, claro, é que a força aérea de Israel esmagaria qualquer ‘ISIS’, no momento em que começasse a cruzar a fronteira da Jordânia, vindo do Iraque ou da Síria.
A importância da “guarnição permanente”, contudo, é que se Israel mantém seu exército na Jordânia (para proteger Israel contra o ISIS), um futuro estado “palestino” não terá fronteiras e ficará como enclave dentro de Israel, cercado por território israelense por todos os lados. “Em tudo semelhante aos bantustões sul-africanos” – diz Avnery.
Em outras palavras: nenhum estado “viável” da Palestina jamais existirá. Afinal, o ISIS não é a mesma coisa que o Hamas? É claro que não é.
Mas Mark Regev, porta-voz de Netanyahu, diz que é! Regev disse à Al Jazeera que o Hamas seria uma “organização terrorista extremista não muito diferente do ISIS no Iraque, do Hezbollah no Líbano, do Boko Haram…” Sandices. O Hezbollah é exército xiita que está lutando dentro da Síria contra os terroristas do ISIS. E Boko Haram – a milhares de quilômetros de Israel – não ameaça Tel Aviv.
Vocês entenderam o ‘espírito’ da fala de Regev. Os palestinos de Gaza – e esqueçam as 6 mil famílias palestinas cujas famílias foram expulsas pelos sionistas das terras onde hoje está Sederot – são aliados das dezenas de milhares de islamistas que ameaçam Maliki de Bagdá, Assad de Damasco ou o presidente Goodluck Jonathan em Abuja.
Sim, mas… Se o ISIS está a caminho para tomar a Cisjordânia, por que o governo sionista de Israel continua a construir colônias ali?! Colônias ilegais, em terra árabe, para civis israelenses… na trilha do ISIS?! Como assim?!
Nada do que se vê hoje na Palestina tem a ver com o assassinato de três israelenses na Cisjordânia ocupada, nem com o assassinato de um palestino na Jerusalém Leste ocupada. Tampouco tem algo a ver com a prisão de militantes e políticos do Hamas na Cisjordânia. E nem o que se vê hoje na Palestina tem algo a ver com foguetes. Tudo, ali, sempre, é disputa por terra dos árabes.
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Robert Fisk é jornalista e escritor britânico premiado diversas vezes com textos sobre o Oriente Médio. É um dos poucos repórteres ocidentais que fala árabe fluentemente.
*CartaMaior

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