Marcada para morrer: quem é a 1ª vítima da PEC que passa ao Congresso a demarcação das terras indígenas
Era homem o chefe dos guarani do Morro dos Cavalos até a professora da Aldeia Itaty se tornar a primeira cacique em fevereiro de 2012. Apesar de ser a nova líder, ela não quis abandonar seus alunos. E não é por coincidência que em ambas as funções ensina os mesmos saberes: para preservar é preciso resistir. Somente por esse motivo que Kerexu Ixapyry, 35 anos, não se intimida por ser também a primeira vítima da PEC 215.
Três dias após a bancada ruralista do Congresso aprovar em comissão especial a PEC 215, que delega ao Legislativo a competência de julgar a demarcação de terras indígenas, Kerexu foi ameaçada de morte. Trinta homens atacaram a aldeia que fica a 30 km de Florianópolis, que é habitada na maioria por crianças e adolescentes (60% do grupo). Vieram em um caminhão, duas motos e dez carros. Soltaram rojões, disseram que iriam expulsar as famílias guarani, invadiram uma casa e como donos do pedaço fizeram churrasco, com direito a música alta, sertanejo universitário.
Uma força-tarefa, composta pelo Batalhão de Choque e viaturas das polícias Federal, Civil, Militar, foi convocada para retirá-los após quatro horas. Eles não foram presos e argumentaram que souberam através de um jornal que aquelas não eram terras indígenas e que seria aberta uma CPI para provar a acusação.
É que mesmo após sucessivas derrotas da Procuradoria Geral do Estado os políticos catarinenses não se conformam que perderam as valiosas terras do Morro dos Cavalos, no município de Palhoça: 1988 hectares, demarcados desde a ponte do rio Massiambu até a ponte do rio do Brito, que ocupam dois lados da rodovia BR-101, a principal ligação entre Porto Alegre e Florianópolis.
Após 23 anos de trâmites, foi comprovado em todas as instâncias judiciais e reconhecido pelo Ministério da Justiça e pelo Supremo Tribunal Federal que o Morro dos Cavalos é tradicionalmente guarani. Apesar disso, os indígenas aguardam há pelo menos três anos a homologação da terra, que deve ser feita pela presidenta Dilma Rousseff. Para eles, o decreto presidencial, representa mais que um título de propriedade, será o fim das campanhas de ódio e difamação.
Eram três os porta-vozes das difamações.
O guarani Milton Moreira expulso de três aldeias de Santa Catarina, inclusive do Morro dos Cavalos, por vender terras da região, que não eram suas, por 10 mil cruzados em 1985.
O comprador das terras, vendidas ilegalmente, Walter Alberto Sá Bensousan, que afirma que os guarani vieram do Paraguai.
E representante da associação de moradores de uma localidade vizinha a Aldeia Itaty, Suzana Alano, foi à Assembleia Legislativa de Santa Catarina chamar a atenção dos deputados sobre o caos que os indígenas trariam caso a homologação fosse efetivada. Suzana fez as contas e concluiu que 100 mil índios, o equivalente a população total guarani de três países da América do Sul, viriam do Paraguai para a região do Morro dos Cavalos em caso de demarcação. Na realidade, 200 indígenas moram ali, nenhum veio do Paraguai, segundo a procuradora Geral da República Analúcia Hartmann.
O delírio sucessivamente repetido virou verdade. Alguns veículos da mídia catarinense consideraram as hipóteses e a PGE (Procuradoria Geral do Estado) e a Fatma (Fundação do Meio Ambiente) as transformaram em tese.
A Fatma não tem nenhuma relação com o Morro dos Cavalos, é apenas o órgão licenciador ambiental de Santa Catarina, mas contratou um antropólogo no ano passado para desconstruir em apenas um laudo o que antropólogos renomados fizeram durante 30 anos de estudos. O autor do laudo é Edward Luz, que nunca publicou nenhum trabalho acadêmico sobre o povo guarani.
Foi expulso da Associação Brasileira de Antropologia, a principal instituição científica do país, por que sua postura foi considerada antiética. Edward virou, inclusive, reportagem da Rolling Stone. A matéria “O mercado das almas selvagens”, conta sobre seu trabalho de evangelização nas aldeias na Amazônia, pregando a Bíblia Sagrada.
A difamação em âmbito governamental foi ainda mais apreciada pela mídia, que desconsidera em suas matérias o parecer do Ministério Público Federal, da Funai, do CTI (Centro de Trabalho Indigenista), da Universidade Nacional de Brasília, da Universidade Federal de Santa Catarina, da Comissão de assuntos Indígenas da Associação Brasileira de Antropologia, do Conselho Indigenista Missionário, do Ministério Público e do Supremo Tribunal Federal de que a tese do governo estadual é furada.
No dia seguinte à votação da PEC, a Câmara divulgou a abertura de uma CPI para investigar processos demarcatórios da FUNAI. Entre os focos está o Morro dos Cavalos. Entre os 21 deputados que votaram a favor da PEC, estão os excelentíssimos Celso Maldaner e Valdir Colatto, ambos do PMDB-SC, que obviamente são favoráveis à CPI.
Valdir Colatto é uma das principais lideranças a favor da revogação do Estatuto do Desarmamento em Santa Catarina, foi financiado pela indústria armamentista e recebeu 36,9% do dinheiro de sua campanha do agronegócio, de acordo com dados do Instituto da Justiça Federal.
Para Kerexu, o legislativo alimenta e a imprensa reforça o ódio da população local contra os guarani. “Sou a cacique do Morro dos Cavalos e nunca fui ouvida nestas reportagens. Eles criaram a verdade que desejam, simplesmente porque para eles atrapalhamos o progresso”, disse.
Segundo a Funai, as tensões estão mais severas e eles temem pela vida da cacique. Há 15 dias homens armados dispararam contra sua casa, onde ela vive com mais três filhos.
Desde que foi iniciado o processo de demarcação das terras indígenas na Grande Florianópolis, dez líderes guarani e Kaiowa foram assassinados no país: Marçal de Souza, Marco Veron, Samuel Martin, Dorival Benites, Xurite Lopes, Teodoro Recalde, Genivaldo e Rolindo Verá, Nisio Gomes e Semião Vilharva. Nenhum inquérito foi concluído pela Polícia Federal, ninguém foi preso.
Apesar do risco de ser índia no Brasil, Kerexu não teme. Para preservar é preciso resistir.
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