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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

terça-feira, novembro 03, 2015

Marcada para morrer: quem é a 1ª vítima da PEC que passa ao Congresso a demarcação das terras indígenas

A índia Kerexu Ixapyry
A índia Kerexu Ixapyry

Era homem o chefe dos guarani do Morro dos Cavalos até a professora da Aldeia Itaty se tornar a primeira cacique em fevereiro de 2012. Apesar de ser a nova líder, ela não quis abandonar seus alunos. E não é por coincidência que em ambas as funções ensina os mesmos saberes: para preservar é preciso resistir. Somente por esse motivo que Kerexu Ixapyry, 35 anos, não se intimida por ser também a primeira vítima da PEC 215.
Três dias após a bancada ruralista do Congresso aprovar em comissão especial a PEC 215que delega ao Legislativo a competência de julgar a demarcação de terras indígenas, Kerexu foi ameaçada de morte. Trinta homens atacaram a aldeia que fica a 30 km de Florianópolis, que é habitada na maioria por crianças e adolescentes (60% do grupo). Vieram em um caminhão, duas motos e dez carros. Soltaram rojões, disseram que iriam expulsar as famílias guarani, invadiram uma casa e como donos do pedaço fizeram churrasco, com direito a música alta, sertanejo universitário.
Uma força-tarefa, composta pelo Batalhão de Choque e viaturas das polícias Federal, Civil, Militar, foi convocada para retirá-los após quatro horas. Eles não foram presos e argumentaram que souberam através de um jornal que aquelas não eram terras indígenas e que seria aberta uma CPI para provar a acusação.
É que mesmo após sucessivas derrotas da Procuradoria Geral do Estado os políticos catarinenses não se conformam que perderam as valiosas terras do Morro dos Cavalos, no município de Palhoça: 1988 hectares, demarcados desde a ponte do rio Massiambu até a ponte do rio do Brito, que ocupam dois lados da rodovia BR-101, a principal ligação entre Porto Alegre e Florianópolis.
Após 23 anos de trâmites, foi comprovado em todas as instâncias judiciais e reconhecido pelo Ministério da Justiça e pelo Supremo Tribunal Federal que o Morro dos Cavalos é tradicionalmente guarani. Apesar disso, os indígenas aguardam há pelo menos três anos a homologação da terra, que deve ser feita pela presidenta Dilma Rousseff. Para eles, o decreto presidencial, representa mais que um título de propriedade, será o fim das campanhas de ódio e difamação.
Eram três os porta-vozes das difamações.
O guarani Milton Moreira expulso de três aldeias de Santa Catarina, inclusive do Morro dos Cavalos, por vender terras da região, que não eram suas, por 10 mil cruzados em 1985.
O comprador das terras, vendidas ilegalmente, Walter Alberto Sá Bensousan, que afirma que os guarani vieram do Paraguai.
E representante da associação de moradores de uma localidade vizinha a Aldeia Itaty, Suzana Alano, foi à Assembleia Legislativa de Santa Catarina chamar a atenção dos deputados sobre o caos que os indígenas trariam caso a homologação fosse efetivada. Suzana fez as contas e concluiu que 100 mil índios, o equivalente a população total guarani de três países da América do Sul, viriam do Paraguai para a região do Morro dos Cavalos em caso de demarcação. Na realidade, 200 indígenas moram ali, nenhum veio do Paraguai, segundo a procuradora Geral da República Analúcia Hartmann.
O delírio sucessivamente repetido virou verdade. Alguns veículos da mídia catarinense consideraram as hipóteses e a PGE (Procuradoria Geral do Estado) e a Fatma (Fundação do Meio Ambiente) as transformaram em tese.
A Fatma não tem nenhuma relação com o Morro dos Cavalos, é apenas o órgão licenciador ambiental de Santa Catarina, mas contratou um antropólogo no ano passado para desconstruir em apenas um laudo o que antropólogos renomados fizeram durante 30 anos de estudos. O autor do laudo é Edward Luz, que nunca publicou nenhum trabalho acadêmico sobre o povo guarani.
Foi expulso da Associação Brasileira de Antropologia, a principal instituição científica do país, por que sua postura foi considerada antiética. Edward virou, inclusive, reportagem da Rolling Stone. A matéria  “O mercado das almas selvagens”, conta sobre seu trabalho de evangelização nas aldeias na Amazônia, pregando a Bíblia Sagrada.
A difamação em âmbito governamental foi ainda mais apreciada pela mídia, que desconsidera em suas matérias o parecer do Ministério Público Federal, da Funai, do CTI (Centro de Trabalho Indigenista), da Universidade Nacional de Brasília, da Universidade Federal de Santa Catarina, da Comissão de assuntos Indígenas da Associação Brasileira de Antropologia, do Conselho Indigenista Missionário, do Ministério Público e do Supremo Tribunal Federal de que a tese do governo estadual é furada.
No dia seguinte à votação da PEC, a Câmara divulgou a abertura de uma CPI para investigar processos demarcatórios da FUNAI. Entre os focos está o Morro dos Cavalos. Entre os 21 deputados que votaram a favor da PEC, estão os excelentíssimos Celso Maldaner e Valdir Colatto, ambos do PMDB-SC, que obviamente são favoráveis à CPI.
Valdir Colatto é uma das principais lideranças a favor da revogação do Estatuto do Desarmamento em Santa Catarina, foi financiado pela indústria armamentista e recebeu 36,9% do dinheiro de sua campanha do agronegócio, de acordo com dados do Instituto da Justiça Federal.
Para Kerexu, o legislativo alimenta e a imprensa reforça o ódio da população local contra os guarani. “Sou a cacique do Morro dos Cavalos e nunca fui ouvida nestas reportagens. Eles criaram a verdade que desejam, simplesmente porque para eles atrapalhamos o progresso”, disse.
Segundo a Funai, as tensões estão mais severas e eles temem pela vida da cacique. Há 15 dias homens armados dispararam contra sua casa, onde ela vive com mais três filhos.
Desde que foi iniciado o processo de demarcação das terras indígenas na Grande Florianópolis, dez líderes guarani e Kaiowa foram assassinados no país: Marçal de Souza, Marco Veron, Samuel Martin, Dorival Benites, Xurite Lopes, Teodoro Recalde, Genivaldo e Rolindo Verá, Nisio Gomes e Semião Vilharva. Nenhum inquérito foi concluído pela Polícia Federal, ninguém foi preso.
Apesar do risco de ser índia no Brasil, Kerexu não teme. Para preservar é preciso resistir.
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Aline Torres
Sobre o Autor
Diplomada em comunicação social em Porto Alegre, colabora com publicações como Estadão, UOL, El País, Zero Hora, Sul21, Jornal Já, Caros Amigos e Notícias do Dia. Fez dois documentários: “Em Busca da Terra do Nunca” e “Vênus do Cárcere”.

*RoseliHenriques

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