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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

quinta-feira, maio 10, 2012

O Governo Invisível


A Europa não ficará rigorosamente igual, depois das eleições em França e na Grécia. O príncipe de Lampedusa, n'O Leopardo, dizia ser preciso alterar alguma coisa para que tudo ficasse na mesma. Em França, o "sistema" rotativo, usual nas democracias ocidentais, que foram feitas para ceder à "organização", a ilusão de tábua rasa permanece. A percentagem com que Hollande ganhou a Sarkozy é significativamente escassa. E a ascensão da Frente Nacional reforça a ideia de que os franceses desejam manter o maniqueísmo que faz parte da sua história.

 Apesar do descrédito que o "socialismo" actual arrasta consigo, um pouco por todo o lado, Hollande conseguiu escorraçar Sarkozy. A França da Revolução é, também, a França xenófoba, racista, patrioteira, com sentimentos ambivalentes em relação à Alemanha (lembremo-nos de Vichy e do colaboracionismo) e os reverentes salamaleques de Sarkozy à senhora Merkel deram azo a um mal-estar sintetizado em anedotas e em cartunes devastadores.


Esta parelha dirigiu a Europa obedecendo a uma ideologia do "governo invisível dos poderosos" [Pierre Bourdieu, Contre-Feux 2], que impôs os seus pontos de vista aos políticos e inculcou métodos de pensamento unívoco. Aqueles dois mais não têm sido do que títeres de um projecto de domínio financeiro, notoriamente totalitário. Neste caso, Hollande, apesar dos constrangimentos que o cercam, pode ser um alívio para a compressão beligerante sob a qual temos vivido.


O caso grego é mais complexo e estimulante. O povo não quer nada do que se lhe impõe, e o que se lhe impõe é, simplesmente, um acto de servidão e de subserviência. De contrário, ou vai embora do euro ou procederá a eleições sucessivas até que o resultado seja coincidente com as normas. Aqui, o desprezo pela democracia, operado pelo "governo invisível dos poderosos", chega a ser infame e obsceno.
A insistência dos gregos em lutar contra a fantasmagoria dos "mercados", que impõe implacavelmente as suas leis, abre novas perspectivas de acareamento com o modelo de sociedade que nos infundem. A "pulverização" dos votos torna possível, de facto, uma amálgama de ideologias e de doutrinas antagónicas; porém, esse caos aparente explica o descontentamento geral e justifica, talvez, o aparecimento de uma nova luz nas relações de poder.


Se a vitória de Hollande talvez descomprima, um pouco, a lógica de tensão que coexiste com a "austeridade" e com a política do quero, posso e mando, o que acontece na Grécia pode, acaso, clarificar a natureza política do projecto neoliberal. Como? Pondo em causa a perfídia doutrinária do "empobrecimento" e da inevitabilidade de passarmos a ser "democracias de superfície", mandadas do exterior por esse inquietante "governo invisível dos poderosos."

 por Baptista-Bastos- fonte DN
*GuerraSilenciosa

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