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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

sexta-feira, maio 04, 2012

Sarkozy ressuscita a besta

Berna (Suiça) - Comentando meu artigo prevendo a vitória do socialista François Hollande para a presidência da França, um leitor de direita, mal informado pela grande imprensa brasileira e mal humorado, comentou que eu decretara a vitória de Hollande.

Engano, foi o povo francês, cansado das estrepolias e traições do atual presidente Sarkozy, quem decretou, e isso tornou visível, já faz algumas semanas, a vitória de François Hollande.

Tudo ficou ainda mais evidente com o debate de três horas, desta quarta-feira, diante das câmeras da televisão francesa (foto), depois do qual os comentaristas políticos franceses e pessoas entrevistadas dão a vitória para o candidato socialista. Foi um verdadeiro duelo, com a surpresa de se ver Hollande, que era chamado de fraco e sem presença, se transformar num agressivo, forte e convincente candidato.

A hora da verdade será domingo, quando cerca de 53% dos eleitores mostrarão a porta dos fundos do Palácio do Eliseu para uma saída discreta do irrequieto Sarkozy por não cumprir suas promessas, por ter falhado na contenção do desemprego, por ter baixado os impostos para os ricos e aumentado para os pobres e outras tantas peraltices.

Sarkozy correu como um hiperativo insone para tentar debelar a crise econômica européia, contando com o apoio da chancelar alemã Angela Merkel, mas o plano de austeridade concebido pela dupla franco-alemã aguarda o momento de ser abortado. A União Européia sabe que as regras vão mudar domingo e seus dirigentes esperam as novas orientações de Paris, que não serão mais na direção do neoliberalismo.

Tudo vai mudar, porque já é historicamente reconhecido que a França tem sempre um papel de liderança e de vanguarda, no continente europeu, seja no mundo das idéias, dos costumes, como na economia e na política.

Assim como Jean-Luc Mélenchon eletrizou o povo francês adormecido e desencantado com sua nova leitura do socialismo, revivendo comícios dignos da Revolução Francesa, da Comuna de Paris ou da vitória do Programa Comum da esquerda que levou Mitterrand à vitória, em 1981, é certo que a derrota da direita de Sarkozy, em franco adultério com a extrema-direita de Le Pen, despertará os ideais socialistas nos eleitores europeus.

Os ventos vão mudar a partir de domingo, mas um espectro ressuscitado por Sarkozy, na louca tentativa de conseguir obter mais votos, ficará rondando à espera de intervir e de transformar a vitória de domingo numa catástrofe.

Sarkozy no seu desespero diante da derrota fez, como Fausto, um pacto com o Diabo e, pela primeira vez, desde o fim da Segunda Guerra Mundial, ressurgiu na boca de uma presidente francês a linguagem do marechal Pétain, colaborador de Hitler após a ocupação da França.

No afã de conquistar os votos da extrema-direita francesa do Front National, liderada agora pela filha de Le Pen, Marine, o já quase ex-presidente deu legitimidade e tornou compatível o discurso racista, anti-estrangeiros e nacionalista popular dos neonazistas franceses.

Mas tudo em vão, porque Marine Le Pen, que promete restabelecer a pena de morte, expulsar os estrangeiros e branquejar a França, tem outro plano – fragmentar e destruir a direita francesa para reconstituí-la como um forte partido híbrido de extrema-direita.

Em outras palavras, após a derrota de Sarkozy e os ajustes de contas que se seguirão, o partido do presidente derrotado implodirá, e no seu lugar surgirá um Front National com outro nome, versão light, enquanto Marine Le Pen, aparentemente lavada dos seus perigosos extremismos, poderá se sentar como líder entre os políticos franceses.

Como num pesadelo, ressurgirá na França um partido nacionalista, cujo programa lembrará os espectros do passado. E o pior poderá acontecer se François Hollande falhar no seu posto de presidente.

Mas, mesmo na versão otimista de um bom governo Hollande, haverá na cena política francesa a ameaça latente da ideologia fascista e nazista, numa versão mais leve e adoçada, porém com o mesmo veneno dos anos 30, escondido no seu interior. Essa a herança de Sarkozy.

Rui Martins - BernaJornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura, é líder emigrante, ex-membro eleito no primeiro conselho de emigrantes junto ao Itamaraty. Criou os movimentos Brasileirinhos Apátridas e Estado dos Emigrantes, vive em Berna, na Suíça. Escreve para o Expresso, de Lisboa, Correio do Brasil e agência BrPress.Direto da Redação.
*Oterrordonordeste

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