Páginas

Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

quinta-feira, agosto 02, 2012

Mujica: "Nunca tivemos uma oportunidade como esta"


Durante a Cúpula Extraordinária do Mercosul, o presidente uruguaio, José Mujica, fez um profundo resgate histórico para situar o atual momento político da região e defender a importância estratégica da integração dos países do continente. "Nunca ao longo da história da América Latina tivemos uma oportunidade como esta. Existe uma vontade política de integração, como nunca houve globalmente na América do Sul".
Vinicius Mansur
Brasília - Dentre os discursos dos quatro presidentes presentes à Cúpula Extraordinária do Mercosul, em Brasília, nesta terça-feira (31), o de José Mujica, presidente do Uruguai, foi o que ganhou menos amplificação jornalística brasileira. Talvez por se tratar do país de menor economia, população e território, em comparação com Brasil, Argentina e Venezuela. Talvez por se tratar do presidente mais comedido e entre os quatro. Talvez por seu espanhol de difícil compreensão aos ouvidos dos lusófonos. Ou talvez porque o conteúdo de sua fala não seja palatável à linha editorial de boa parte da mídia local.
O certo é que o presidente uruguaio fez um profundo resgate histórico para situar o atual momento e defender a importância estratégica da integração dos países do continente. Confira a íntegra do discurso:
"Bom amigos, depois desse furacão (referia-se ao discurso de Hugo Chávez, que o antecedeu) o que pode dizer um humilde paisano.
É muito grande a dívida social que temos nesse continente. Talvez o mais rico da Terra, mas é bom que lembremos que é o mais injusto de todos os continentes. Esse é o preço que pagamos ao longo de nossa história porque vivemos muito tempo olhando para o resto rico e sem olharmos entre nós.
Cada porto importante terminou vertebrando um país. Era muito mais importante a conexão com o mundo, com a cultura européia. Para qualificar os universitários, há 70 anos, tinham que ir a Paris. Nossos homens de arte tinham que visitar a França, nossos homens de empresa tinham que ir a Grã Bretanha. Nossa linguagem, nossa moda, nossa vestimenta quase ignorava a sorte de nossos vizinhos.
Terminamos gerando uma cultura particular de opressão dos povos aborígenes que em muitas partes ficaram postergados, analfabetos e esquecidos e constituem uma espécie de coluna vertebral dessa dívida ao longo de toda a Cordilheira dos Andes.
Estamos tentando refazer nossa história porque vivemos no continente mais rico em matéria de recursos e o mundo deu uma virada inesperada. Quando éramos jovenzinhos a Cepal nos dizia “que horrível a desvantagem dos termos de intercâmbio”. Não sei o que aconteceu. E mudaram as relações no mundo. Hoje, paradoxalmente, o mundo industrial está em crise. E nós estamos quase historicamente acostumados que quando o mundo rico está em crise, pobre de nós. No entanto, parece que os que estão pobres são eles e que nós estamos levando muito bem.
Nossos emigrados à Europa voltam. É que agora houve tanto acerto em nossas políticas, ou um pouco de acerto porque a dor ensinou, ou estamos em outro mundo. O certo é que nunca ao longo da história da América Latina tivemos uma oportunidade como esta.
Houve homens grandes, gigantescos por sua visão. Contudo, os coroou o fracasso porque o compasso histórico não os acompanhava. Hoje há uma força de caráter histórico que colabora e, paradoxalmente, nesta América começamos a encontrar-nos. Existe vontade política de integração, como nunca teve globalmente a América do Sul. Eu repito: como nunca teve!
Não se trata de quem está na liderança política conjunturalmente, de uma superioridade, como gigantes do passado. É que estamos em outro momento histórico. E temos que ser conscientes: agora ou nunca!
E o desafio é enorme porque, por um lado, o Estado nacional não pode ser uma armadilha, nossa formação cultural, de onde viemos, nos pode ser uma armadilha. E a mesquinhez de nosso raciocínio pequeno pode contribuir em multiplicar os obstáculos.
Ademais, basta o que indicou a presidente argentina: o olhar e o trabalho de outros, colocando paus na roda, e nossas quintas colunas internas, invitáveis pelos interesses de classe, chave em todo este debate de caráter histórico.
Os mais pobres, a gigantesca maioria não encontra e não resta consciência para expressar-se. Está se expressando um pouco através do verbo solidário de minorias intelectuais que encabeçam os partidos que mais pensam pelo povo. As grandes maiorias estão ali, como que contemplando esse debate.
Nosso dever é incluí-la. E que participe. E que se dêem conta que aqui se está jogando o seu futuro de caráter histórico. A história do futuro não pode ser escrita pela gente que lê dois diários por dia. A história do futuro tem que ser escrita pela gigantesca multidão que ainda são nosso exército de reserva que está ali, lutando por viver, por conquistar o mínimo. Os postergados, os esquecidos, os acumulados, os que são a causa perdida, mas que no fundo expressam nossa nacionalidade, nossas instituições, filhas do feudalismo que sobrevivia dentro da república.
Nossa verdadeira causa está nos anônimos que andam por aí, na multidão, anônimos, com os quais temos uma causa de caráter histórico e uma tremenda dívida. Não nos esqueçamos porque, caso contrário, não teremos a força do desafio e do embate que temos pela frente. Obrigado Venezuela, contigo o Caribe. Quantas ilhas postergadas, que falam inglês ou algo parecido ao inglês. Também irmãos postergados pelo que vieram, pelo que trouxeram os barcos de escravistas. A semeadura de dor que se fez nessa América. Nunca nos esqueçamos disso. A dívida que temos com a negritude, tudo isso compõe esse crisol de causa, de dor, de povo, de angústia, de esperança que fica pela frente.
Por isso, alguém disse que tem que se somar os homens de empresa tratando de criar o sistema de empresas multinacionais. Tem que somar-se também os trabalhadores. Tem que somar-se também os trabalhadores! Os que andam de camisa, os que andam em sandálias. Em alguma forma a pata popular da história tem que se sentar nas decisões desse Mercosul. Porque, do contrário, não será o suficientemente democrática e isso é parte de nossa luta. Obrigado, companheiros".
Tradução: Vinicius Mansur
Fotos: Wilson Dias/ABr
*GilsonSampaio

Nenhum comentário:

Postar um comentário