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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

quarta-feira, julho 24, 2013

João Saldanha, o militante comunista que comandou a Seleção Brasileira


João SaldanhaEstamos numa época em que o futebol, esporte tão amado pelo povo, foi transformado em mercadoria.Em que o povo brasileiro vai às ruas, em plena Copa das Confederações, protestar pela redução das passagens de ônibus, contra os superfaturados gastos bilionários com os estádios, contra a interferência da Fifa na soberania nacional, contra as remoções dos pobres que moravam nas áreas onde os estádios foram construídos.Numa época em que o futebol tem sido instrumento de corrupção, lavagem de dinheiro, enriquecimento de uma minoria, refúgio para agentes da Ditadura Militar.
Pois bem, nada mais oportuno então do que resgatar o nome de um cidadão consciente, engajado, militante, amante do futebol e profissional bem sucedido como técnico e comentarista esportivo. É preciso que a juventude rebelde conheça e se mire no exemplo de João Saldanha.
João Alves Jobim Saldanha já nasceu lutando, no dia 3 de julho de 1917, ano abençoado, em que os bolcheviques tomavam o poder na Rússia, instalando o primeiro governo popular da História, que construiria a primeira experiência de socialismo científico na vida humana. Não. Não quero dizer que o menino já nasceu comunista. É que o casal que o gerou – Gaspar Saldanha e Jenny Jobim Saldanha –estava refugiado no Uruguai por conta de sua participação no enfrentamento dos maragatos contra os chimangos, no Rio Grande do Sul. Voltou pouco tempo depois às terras gaúchas, e, aos seis anos de idade, ajudava os irmãos mais velhos – Aristides e Maria – a carregar armas e munições por baixo da roupa.
Maragatos x Chimangos
Um breve intervalo para compreendermos melhor essa luta. Começou em 1893, com os maragatos defendendo uma Federação com maior autonomia para os Estados, considerando que o governo central exercia um controle quase absoluto, negando, na prática, a República Federativa proclamada em 1889. O apelido tem origem no fato de que os líderes da Revolução Federalista estiveram exilados no Uruguai, numa região chamada de Maragateria.  Defendendo o Governo Central, estavam os Pica-Paus, assim denominados por conta de um chapéu branco que deixava suas cabeças parecidas com a do pássaro. O conflito terminou em 1895 com a derrota dos maragatos. Mas estes não desapareceram. Retomaram o combate em 1923, contra o governo de Borges de Medeiros. Este era acusado de fraude eleitoral, corrupção e repressão, agindo como verdadeiro ditador. A luta durou 11 meses, terminando em dezembro com uma negociação intermediada pelo Governo Federal. Borges permaneceu no Governo, mas foram abolidas a reeleição e a indicação de intendentes prefeitos. Os defensores do Governo do Estado foram denominados chimangos, uma ave de rapina parecida com o carcará.
Futebol e Militância
A família mudou-se para o Paraná, onde morou em várias cidades do interior, fixando-se finalmente em Curitiba, a dois quarteirões do Atlético Paranaense. O gosto pelo futebol começou ali, jogando com os meninos da vizinhança e assistindo aos treinos atleticanos. Uma curiosidade: no curso primário, teve como colega de escola um garoto que se tornaria personagem marcante na História do Brasil: Jânio da Silva Quadros.Nova mudança, agorapara o Rio de Janeiro, em 1931;João Saldanha tinha 14 anos. Aos 18, conseguiu mudar seu registro de nascimento,oficializando-se como natural de Alegrete (RS), onde a família vivia antes de deixar os pampas. No Rio, continuou seus estudos, cursou a Faculdade de Direito, ingressou no PCB, então denominado Partido Comunista do Brasil, e jogou profissionalmente pelo Botafogo, pouco tempo, parando após fraturar uma perna.
João SaldanhaO cronista Rubem Braga assim o descrevia: “Um cara que não perdeu aquele topete gaúcho e incorporou muito da malícia carioca”. E Nelson Rodrigues, escritor e teatrólogo, deu-lhe uma alcunha: João Sem Medo.
Na fase mais dedicada à militância política no PCB, João Saldanha foi assistente político do grupo que conduziu a guerrilha camponesa do Porecatu, no Paraná (1947-1951); ele era o “Professor Siqueira”, lembra JeaneteGouvea, que o conheceu na época e escreveu sobre esta revolta para o jornal A Verdade,nº 67.
Com larga experiência na redação dos jornais e boletins clandestinos do PCB, Saldanha estreou como comentarista esportivo no Rádio Nacional, tendo se tornado muito popular e festejado pelo modo enfático e simples de comentar e pela criação de frases inesquecíveis, que se tornaram bordões populares, a exemplo de “Se concentração ganhasse jogo, o time da penitenciária seria campeão” e “Se macumba ganhasse jogo, o campeonato baiano terminaria empatado”.Em 1957, o Botafogo o convidou para técnico. Ele não tinha experiência, mas o clube ganhou o campeonato estadual. Mais um êxito profissional.
Na Copa do Mundo de 1966, o Brasil teve um fraco desempenho. A imprensa, o povo todo, criticava. Era geral o descrédito para a Copa de 1970. João Saldanha também criticava, mas de forma construtiva, dava sugestões. A direção da CBD (Confederação Brasileira de Desportos) pensou uma cartada. Ele era super-respeitado como comentarista, tinha levado o Botafogo à vitória como técnico. Então, que venha comandar a Seleção Brasileira.
João Sem Medo aceitou o desafio. E disse: “Só vou convocar feras”. Por isso, a imprensa batizou a seleção como “As Feras do Saldanha”. E eram.  Pelé, Tostão, Gérson, Rivelino, Carlos Alberto Torres, Jairzinho… “Tive a sorte de contar com um celeiro de craques; lamentei não convocar Ademir da Guia, por exemplo…”1(Ademir era um grande jogador, ídolo da torcida palmeirense).
“Na seleção, mando eu”
O Brasil vivia sob ditadura militar. Quando Saldanha foi convocado, o ditador de plantão era o general Artur da Costa e Silva, que mantinha uma fachada “democrática”. Mas 1968 foi um ano de grandes mobilizações de massa, especialmente do movimento estudantil, e, em dezembro, veio o AI-5, o golpe dentro do golpe.A dita, que alguns consideravam branda, endurece de vez.Uma polêmica, aliás, inócua, porque como bem definiu o poeta “dita é sempre dita, tanto faz dita mole ou dita dura, tanto faz”,pois, “cala a voz, mata a canção, joga o direito no chão…”2
Em agosto de 1969, Costa e Silva, considerado da ala moderada das Forças Armadas, adoece. Assume uma Junta Militar e, a seguir, é nomeado para a chefia da Ditadura o general Emílio Garrastazu Médici. Este não simpatizava com um comunista dirigindo a Seleção,especialmente quando convocou a CBD para uma reunião, e João Saldanha não compareceu. Ele justificou: “…Eu não teria prazer em apertar a mão de um homem que tinha matado vários amigos meus. Não sei se foi ele quem mandou ou deixou. O caso é que, coincidentemente, trezentos e tantos morreram naquele Governo, o mais assassino da História do Brasil”.
As eliminatórias foram um sucesso, mas, uma semana antes da Copa de 1970, João Saldanha é demitido. A versão corrente, assumida pelo próprio Saldanha, é que Médici queria mandar em tudo e começou a pressionar em favor da convocação de jogadores de sua preferência, especialmente Dario Maravilha (Atlético Mineiro), pois queria agradar Minas Gerais. Segundo Saldanha, Dario era “…um bom jogador. Era de alto nível, mas não de tão alto nível como os jogadores de que a Seleção Brasileira precisava”.
Médici pressionava a diretoria da CBD, e esta transmitia a pressão para João Saldanha, até chegar ao ponto de João Havelange dizer: “João, não podemos aguentar mais. Pelo amor de Deus, convoque Dario”.  “Se convoco Dario, eu ia me avacalhar. Não me avacalhei”.
Há um boato, não comprovado, de que a cúpula do regime se reunira para debater o tema João Saldanha. Houvera uma divisão. Parte considerava que não ficava bem a taça ser levantada por um comunista. Outra parte afirmava que o Partido teria decidido que a Seleção não poderia ser vitoriosa, pois isto serviria de propaganda para o Governo. A minoria confiava em Saldanha e acreditava que ele não se submeteria a pressão de ninguém. Por via das dúvidas, foi decidido demiti-lo. A ordem de convocar Dario teria sido apenas um pretexto.
O fato é que veio a demissão. Assume Zagallo às vésperas da Copa. Manteve o mesmo time. Só teve o trabalho de levantar a taça. Um desempenho fenomenal “As Feras de Saldanha” tiveram no México, levando o Brasil ao tricampeonato mundial.
João Saldanha voltou à sua função de comentarista renomado e continuou militando no PCB até o fim da vida, que aconteceu em 12 de julho de 1990, em Roma, onde fora cobrir a Copa do Mundo, por conta de um enfisema pulmonar. O Brasil caiu nas oitavas de final.
José Levino,
historiador
AVERDADE

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