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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

segunda-feira, maio 17, 2010

O documentário argentino Memórias do Saque






VAMOS SEGUIR O MODELO ARGENTINO?
via Escreva Lola Escreva de lola aronovich em 17/05/10
O documentário argentino Memórias do Saque (que pode ser visto na íntegra no YouTube) é um programa obrigatório para antes das eleições. Ele trata do que levou a Argentina à pior crise da sua história, aquela que praticamente destruiu o país em 2002. Basicamente, o presidente Carlos Menem, sob as diretrizes do FMI, privatizou tudo. O resultado foi desastroso. Um bom exemplo foi o do sistema ferroviário: antes de ser privatizado, ele empregava 95 mil pessoas. Hoje, emprega 15 mil. Quem pensa que o importante é que uma empresa tenha lucro pode até dizer: ah, lógico que só ficaram os 15 mil mais eficientes, o resto era máquina estatal inchada. Certo. Talvez alguém possa explicar como um sistema que antes tinha 30 mil km de ferrovia, e hoje tem 8 mil, possa ter ficado mais eficiente. Porque defender corte de funcionários é fácil. Mas corte de trilhos? Engraçado que quem critica os países pobres pela falta de infraestrutura ignora esses detalhes.
Eu morei em Detroit por um ano. Lá, o sistema público de ônibus era bem ruim. Tá certo que só 10% da população local pegava ônibus, mas eram poucos ônibus, poucos horários, poucas linhas. E isso por quê? Porque três das principais montadoras de automóveis dos EUA e do mundo ficavam em Detroit (ficam ainda, mas em 2008 elas pediram água, e o governo teve que aparecer para salvá-las financeiramente). E elas faziam um grande lobby para que não houvesse investimentos no transporte público. Assim como sou contra as instituições religiosas interferirem no estado, também critico que interesses de empresas privadas interfiram no estado. Porque em boa parte das vezes o interesse de uma empresa privada (o lucro, acima de tudo) não bate com o da população.
Mas, voltando ao caso da Argentina, privatizaram todo o setor petrolífero, que dava lucro (e eu adoro como, pra justificar a privatização de uma estatal que dá prejuízo, dizem que é ineficiente. Quando dá lucro, é algo como “É verdade, dá lucro, mas o que o governo está fazendo dirigindo uma estatal de petróleo?”). Lá pelas tantas no documentário, alguém lembra que a Argentina foi um caso inédito no mundo: “Não se conhece um outro país que haja entregue seu gás e seu petróleo sem haver perdido uma guerra”. E a ironia maior: ninguém pagou pelas concessões. O governo vendeu o que era público e não viu a cor do dinheiro.
E aqui no Brasil? Tivemos várias privatizações durante o governo passado. Pesquisas mostram que a única aceita pela população é a da telefonia ― e isso se a gente fechar os olhos pro fato que temos uma das piores e mais caras conexões de internet no mundo. E, lógico, vale a pena perguntar como o país teria sobrevivido à crise mundial iniciada em 2008 se houvesse seguido com as privatizações.
Privatizar faz parte de um projeto político maior, e por isso é fundamental conhecer o programa de cada candidato. E, na falta desse programa, pois há partidos políticos que escondem suas obras, é bom vasculhar o passado. Quem fez o quê, e por que. Não se trata de bonzinhos e malvados, embora, no caso da Argentina, os maus sejam mais do que evidentes. Quem é bom e quem é mau depende do que você defende. Se você acha que o governo tem que ser mínimo, que as empresas privadas não precisam de regulamentação porque querem o bem-estar de seus clientes (já que pro modelo privado não existem cidadãos, apenas consumidores), que o estado serve pra emperrar, e que o livre mercado é eficiente e não merece ser “atrapalhado” pelo governo, bom, assuma-se: este é o pensamento da direita. Sabe aquela direita que dizem que não existe mais depois que o Muro de Berlim caiu? Pois é, essa mesma. Você não está sozinho, muita gente pensa assim. E tudo bem, desde que você defenda o pacote completo: Estado mínimo significa quase nada de investimento em educação e saúde, por exemplo. Você deve ter plano de saúde, mas mesmo assim quer vaga numa universidade federal pra você ou seus filhos, certo? Porque universidade pública é superior à particular. E por isso você fica tão revoltado com as cotas, que estão reservando as vagas nas universidades públicas para quem vem de escolas públicas. Anyway, mesmo que você esteja bem servido na vida (não é sorte, eu sei, é que você trabalhou um monte), talvez dê pra eleger um governo que favoreça os menos sortudos?
Pra quem acha que PT e PSDB são iguais, convém refletir um pouquinho. A principal diferença é em como cada um enxerga o tamanho do Estado. O governo Lula é acusado pela mídia de “inchar” a máquina pública. Mas esse inchaço é causado por pessoas como eu, uma entre os oito mil professores contratados pra trabalhar numa universidade federal. É causado pelo Bolsa-Família, que custa uma migalha pros cofres públicos, mas possibilitou que 14 milhões de pessoas saíssem da linha da miséria. Dilma defende esse inchaço abertamente. Pra ela, o Estado deve ser forte e atuante. Já o PSDB, o que quer? Eles não dizem exatamente, porque pega mal, às vésperas de uma eleição, mencionar cortes em algumas áreas. No máximo usam uma palavra bonita, choque de gestão ― que equivale exatamente a cortar gastos públicos, ou seja, adeus novas universidades com novos professores, ou novos hospitais com novos médicos, ou sequer algum resquício de reajuste salarial para professores e médicos antigos, ou aumento real do salário mínimo. É só ver o que fez o governo FHC em seus dois mandatos, e o que fez Serra no governo de SP. Não é difícil comparar. Veja o valor do salário mínimo em 2002 e hoje. Veja quanto ganha um professor de uma escola estatal em SP, estado mais rico do país. Ou um policial militar. Ou uma enfermeira.
Mas claro, podemos continuar insistindo que não há diferença entre os candidatos e que vamos votar no Serra porque não gostamos da plástica da Dilma. Enfim, centrar-se nos indivíduos, que nunca governarão sozinhos, e não no projeto político de cada um. Essa fórmula funcionou na Argentina, né?

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