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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

segunda-feira, dezembro 06, 2010

Efetivar o Estado laico





Por Túlio Vianna *

O monoteísmo não é nada democrático. A crença em um deus único pressupõe a negação da existência do deus do vizinho. Pior: pressupõe que os mandamentos do seu deus são mais justos que os do deus do vizinho. E é natural que todos aqueles que se arroguem o direito de falar em nome deste deus único e todo-poderoso não primem muito pelo pluralismo. Quem ousaria contestar alguém que fale em nome de um deus onipotente, onipresente e onisciente?

A história está repleta de casos de políticos que sustentaram seu poder em nome de Deus. A teoria do “Direito Divino dos Reis”, em voga no século XVII, deu a Luiz XIV a necessária fundamentação ideológica para tornar-se o maior monarca absolutista da França: “L’État c’est moi” (O Estado sou eu) é a frase que melhor sintetiza o poder do mandatário de Deus na terra.

No século seguinte, a mão de Deus não evitou que as cabeças de seus representantes na Terra rolassem, e só então os ideais iluministas de separação entre direito e religião começaram a prevalecer. Nascia, assim, a concepção de um Estado laico, que viria a nortear as democracias ocidentais até hoje.

No Brasil, durante todo o Império, o catolicismo continuou sendo a religião oficial, e as demais eram apenas toleradas (art. 5º da Constituição de 1824). Como Estado confessional, o imperador, antes de ser aclamado, jurava manter aquela religião (art. 103) e cabia a ele nomear os bispos (art. 102, XIV). Somente com a proclamação da República, o Brasil se tornou um Estado laico, garantindo assim a separação entre Estado e religião (art. 72, parágrafo 3º a 7º da Constituição de 1891).

A atual Constituição brasileira de 1988 não deixa dúvidas quanto ao caráter laico de nosso Estado, garantindo expressamente a liberdade de crença, a liberdade de culto e a liberdade de organização religiosa (art. 5, VI da CR) e estabelecendo claramente a separação entre Estado e religião (art. 19, I, da CR).

E “nunca antes na história deste país” esta separação entre direito e religião foi tão importante. Com a expansão das religiões neopentecostais nos últimos anos, o catolicismo, que sempre foi francamente majoritário no Brasil, começou a perder espaço, e os brasileiros começaram a deparar-se com os problemas típicos do pluralismo religioso.

Divergências de crenças de um povo 90% cristão

A pesquisa Datafolha de maio de 2007 mostrou que 64% dos brasileiros se declararam católicos; 17%, evangélicos pentecostais ou neopentecostais; 5%, protestantes não pentecostais; 3%, espíritas kardecistas; 1%, umbandistas; 3%, outra religião e 7%, sem religião.

Poderíamos simplificar esses números e afirmar que o Brasil é um país 90% cristão, mas, na verdade, essas religiões divergem sobre pontos significativos de suas doutrinas, a começar por católicos e protestantes. Para os protestantes, a Bíblia é a única fonte de revelação de Deus, e eles tendem a interpretá-la em sentido mais literal. Já os católicos acreditam também na Sagrada Tradição, isto é, nos ensinamentos orais transmitidos pelos cristãos ao longo dos séculos, como complementares ao texto bíblico. Daí, surgem diferenças importantes: católicos adoram os santos e Maria, mãe de Cristo; os protestantes, não. Os católicos reconhecem o papa como líder espiritual e acreditam nos sete sacramentos como instrumento para a sua salvação; os protestantes crêem que somente a fé em Jesus é capaz de salvá-los. Católicos interpretam o livro de Gênesis, que narra a história de Adão e Eva, como uma metáfora; alguns protestantes o interpretam literalmente e defendem o ensino do criacionismo na escola.

Mas há diferenças significativas também entre os protestantes históricos (batistas, luteranos, presbiterianos, metodistas e outros) e os pentecostais (conhecidos no Brasil como evangélicos).

[...] Há diferenças substanciais também entre o pentecostalismo clássico ( Assembléia de Deus, Congregações Cristãs, Deus é Amor e outras) e o Movimento Neopentecostal (Igreja Universal do Reino de Deus, Igreja Renascer em Cristo e outras).

[...] Finalmente, os neopentecostais têm uma divergência inconciliável com os espíritas. Ambos crêem em manifestações sobrenaturais na vida cotidiana. Os espíritas acreditam na reencarnação e crêem que essas manifestações são causadas por espíritos de pessoas que faleceram e ainda não reencarnaram. Já os neopentecostais não acreditam em reencarnação e nem na possibilidade de os mortos se comunicarem com os vivos. Para eles, esses espíritos são na verdade manifestações do demônio e, portanto, precisam ser combatidos.[...]

Nesse contexto fervilhante de crenças, nada mais natural que se retomem as discussões sobre a importância do Estado laico. Enquanto o Brasil era um país com população quase que exclusivamente católica, a maioria simplesmente impunha suas crenças sobre a minoria, que, de tão pequena, não levantava sua voz para lutar pelo Estado laico.

Basta ver os crucifixos afixados nas paredes dos tribunais e órgãos públicos brasileiros. Se até então o símbolo do predomínio católicos em nossos tribunais só incomodava à pequena minoria não cristã da população, atualmente muitos protestantes já se insurgem contra ele. Infelizmente, em 2007, o Conselho Nacional de Justiça (CNI) decidiu que os crucifixos nos tribunais não violam o princípio constitucional de laicidade, por se tratar de um costume já arraigado na tradição brasileira. [...]

Ensino religioso nas escolas públicas

A questão atualmente mais polêmica que decorre do princípio constitucional da laicidade é a do ensino religioso, de matrícula facultativa nas escolas públicas, previsto expressamente no art. 210, parágrafo 1º, da Constituição Brasileira.

O Acordo Brasil-Vaticano (Decreto 7.107/10), que em seu art. 11, parágrafo 1º, prevê “o ensino religioso, católico e de outras confissões religiosas”, provocou imediata reação da sociedade civil ao colocar em risco a igualdade de tratamento entre as religiões. [...]

Melhor seria, porém que o Estado deixasse cada família decidir sobre a melhor formação religiosa de seus filhos, matriculando-os em cursos fornecidos pelas próprias igrejas e outras instituições religiosas. Uma emenda constitucional que abolisse o ensino religioso nas escolas públicas resolveria de vez a controvérsia, relegando a formação religiosa para a esfera exclusivamente privada.

A meta do Estado laico

O Estado laico ainda é uma meta a ser perseguida pelo Direito brasileiro. Se na questão dos crucifixos e do ensino religioso a manifestação de cristãos não católicos tem sido decisiva para colocar em pauta os debates, as violações do princípio da laicidade tendem a ser menosprezadas quando há consenso entre católicos e protestantes. [...]

O nome do deus monoteísta tem sido usado sem maiores pudores na esfera pública, sob o argumento de que contemplaria todas as religiões. Alega-se que o preâmbulo da Constituição de 1988 se refere expressamente à “proteção de Deus” e, portanto, o ateísmo estaria excluído da liberdade de crença. Trata-se de um falso fundamento jurídico, já que o preâmbulo, por sua própria definição, é o texto que antecede a norma e, portanto, não faz parte dela. Em suma: não tem qualquer valor normativo.

A liberdade constitucional de crença é também uma liberdade de descrença, e ateus e agnósticos também são cidadãos brasileiros que devem ter seus direitos constitucionais respeitados. O mesmo se diga em relação aos politeístas, que acreditam em vários deuses e não aceitam a idéia de um deus onipotente, onisciente e onipresente.

Um bom exemplo do uso do nome de Deus com violação do princípio da laicidade é a expressão “Deus seja louvado” no dinheiro brasileiro. [...]

O paradoxal dessa menção de Deus no dinheiro brasileiro é que a Bíblia narra (Mateus: 22, 21) uma passagem em que Jesus rechaça uma tentativa de uso político de seus ensinamentos e reconhece a importância do Estado laico, referindo-se justamente à moeda romana: “Daí o que é de César a César, e o que é de Deus, a Deus”. Das duas, uma: ou o Deus cristão mudou de idéia nesses últimos dois mil anos ou seus representantes na Terra andam excedendo os limites da procuração por Ele outorgada.


 Túlio Vianna é professor de Direito Penal da Faculdade de Direito da UFMG.
*observadoressociais

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