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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

terça-feira, agosto 09, 2011

Dia dos pais

Prepare-se: domingo é dia dos pais. Durante toda esta semana você será bombardeado com propagandas de cuecas, canetas, camionetes, furadeiras e espetos de churrasco.

Não importa se você tem ou não tem pai, se você é o próprio, se você não gosta de datas comemorativas, não há saída porque esses anúncios não faltam.

Não faltam também propagandas de bebidas alcoólicas, com mensagens estranhas e enigmáticas. Uma delas, em tom solene, adverte: “Este vinho é exclusivo para heróis, heróis como o seu pai”.

Francisco Xavier Medeiros Vieira fotografado,
em 2008, pelo autor da crônica.
Não sei se isso funciona, não entendo de vinho e menos ainda de publicidade, mas considero arriscada a estratégia de venda. Além de excludente, ela abre polêmicas familiares perigosas. Afinal, o que é ser herói?

Quase todo filho nutre admiração pelo pai, apesar dos defeitos, dos silêncios recíprocos, dos diálogos interrompidos, do tempo não dispensado. Quase todo pai é o melhor do mundo, apesar de não o ser.

Isso não responde se você pode – obviamente supondo que seu velho ainda esteja neste mundo – comprar aquele vinho, exclusivo para heróis. Não sei de você, mas, para mim, herói é aquele que faz coisas incomuns, coisas boas que a grande maioria das pessoas não sabe ou não está disposta a fazer.

Nos dias de hoje, portanto, herói é ser sincero e generoso com os outros e consigo mesmo. É saber ouvir e ouvir sem julgar, respeitando as diferenças. É escolher o caminho que considera justo, mesmo que seja o mais longo e o mais espinhoso. É reconhecer quando se erra e rir dos próprios erros.

Ser herói é não perder o equilíbrio, apesar do chão escorregadio, das pressões e do barulho ao redor. É perceber que numa música pode estar escondido todo o mistério, por saber que o mistério se revela em qualquer lugar. É cultivar a simplicidade, apesar de algumas glórias e conquistas, por saber que glórias e conquistas são passageiras.

Ser herói é dividir tudo o que se tem e, muitas vezes, o que falta. É ter a porta da casa aberta para quem precisa e para quem não precisa, para os amigos e até para os desafetos. É não guardar ódios e saber conviver com as tristezas. É fazer o que se diz e dizer sem gritar porque todos o escutam e o respeitam.

Ser herói é permanecer menino, com o olhar curioso, encantado com a vida que sabe ser imprevisível, por isso fascinante. Ser herói é manter intacta a ternura, apesar dos pesares.

Sob esse aspecto, preciso confessar, meu pai – Francisco Xavier Medeiros Vieira – é um herói. Um herói de carne e osso, com alguns defeitos e sem poderes mágicos, mas um herói de verdade. Desapegado das coisas materiais e desses elogios virtuais, ele vai achar graça da crônica, mas vai aceitar o vinho.

Fernando Evangelista 
*notasderodapé

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