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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

sexta-feira, outubro 14, 2011

Americanos ou Estadunidenses?

Os cidadãos e cidadãs dos Estados Unidos têm o mau hábito de referir-se a seu país como a “América” e a si mesmos como “americanos”. Simplesmente desprezam o fato elementar de que o continente americano é formado por três porções – a América do Norte, a América Central e a América do Sul – e é integrado por numerosos países e não apenas pelos Estados Unidos. Todos os povos desses países são tão americanos quanto o dos Estados Unidos.
Há quem imagine que, referindo-se a “norte-americanos” em vez de “americanos”, resolve a designação equivocada e arrogante. Quem pensa assim, negligencia outro fato elementar: o de que a América do Norte não é integrada somente pelos Estados Unidos, mas também pelo Canadá e pelo México. Os povos desses países são tão norte-americanos quanto o dos Estados Unidos.
Quem reduziria a “Europa” à França, 
por exemplo, e chamaria os franceses 
simplesmente de “europeus”?
A designação adequada para referir-se ao território dos Estados Unidos, ou a seus cidadãos, cidadãs e habitantes, ou a suas instituições, criações e história, é a de estadunidenses. É um adjetivo mais longo e menos eufônico, poderão objetar alguns acomodados à referência tradicional e arraigada, mas é o adjetivo correto. Quem reduziria a “Europa” à França, por exemplo, e chamaria os franceses simplesmente de “europeus”?
As designações dos Estados Unidos como “América” e dos estadunidenses como “americanos” ou “norte-americanos” são tão reiteradas que até estadunidenses críticos e progressistas acabam escorregando inadvertidamente nessas referências presunçosas e imperiais. Mais lamentavelmente ainda, elas têm sido tão repetidas que acabaram sendo copiadas pelos demais povos americanos numa introjeção passiva e irrefletida.
A crítica a esse hábito secular pode parecer uma picuinha desimportante. Mas ele reforça, mesmo que inadvertidamente, nos estadunidenses, sua conhecida prepotência e, nos demais povos americanos, uma acomodação subserviente e perigosa. Não há motivos que justifiquem a aceitação dessa tentativa de usurpação, mesmo que simbólica, de nossos direitos comuns sobre o território, a história e as criações das Américas.
Todos nós somos americanos e ao mesmo tempo argentinos, brasileiros, cubanos, mexicanos e estadunidenses. A disparidade atual de riqueza e de força entre nossos países não legitima essa apropriação cultural.
As expressões idiomáticas não são inocentes nem inócuas, como parecem. Considere-se, por exemplo, o uso indiscriminado que se passou a fazer do termo “terrorismo” para desqualificar qualquer ato ou movimento armado de resistência às tiranias violentas e às diversas formas, também armadas, de opressão nacional e social.
Por mais difícil que seja, comecemos a praticar um pequeno ato quotidiano de resistência cultural, recusando-nos a identificar os Estados Unidos com as Américas e a tratar os estadunidenses como os únicos americanos ou norte-americanos, chamados a modelar os demais países e povos de nosso continente segundo seus interesses, escolhas e tradições.
Habituemo-nos a chamar os Estados Unidos de Estados Unidos e seus cidadãos, habitantes e instituições de estadunidenses – como são. Recuperemos nossa estima e nossa autonomia.
Duarte Pereira, 72 anos, é jornalista e escritor, especial para o Nota de Rodapé e Correio da Cidadania.

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