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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

quarta-feira, outubro 26, 2011

Brucutu distrital

 

Hoje, nas páginas da Folha, reemerge das sombras Eduardo Graeff, o brucutu da campanha de Serra.
Graeff é um homem de méritos. Ao contrário do eterno chefe, Fernando Henrique Cardoso, ele não sofistica muito a linguagem e, assim, confunde menos.
Mas hoje ele faz um esforço e tenta apresentar argumentos e contra-argumentos. E adota a falsa erudição que acha bonito no “mestre” para defender o voto distrital.
Primeiro, tenta mistificar, é claro, dizendo que o voto distrital equivale às “diretas-já” e que está ganhando a opinião pública.
“Não sei quanto tempo pode demorar para essa ideia se espalhar na sociedade até ganhar força no Congresso. Os movimentos de opinião às vezes atingem um ponto em que a curva de crescimento passa de incremental a exponencial. Foi assim com as diretas-já para presidente da República. Pode ser assim com as diretas-já para deputado, que é o que voto distrital significa.”
E ataca o voto em lista partidária dizendo que é “uma usurpação do seu direito de escolha”.
Seria muito interessante, sobre esta questão da usurpação, que o senhor Graeff lesse o artigo do sociólogo Alberto Carlos Almeida, mostrando como é excludente o voto distrital, de onde retiro estes trechos:
“Para se obter a maioria dos deputados em uma Câmara eleita por meio do voto distrital, basta que um partido obtenha somente 25% dos votos nacionais. Isso porque é preciso ter 50% de votos em 50% dos distritos, o que resulta nos 25% dos votos nacionais mencionados. Resultado: a maioria governa graças a uma minoria de votos, e a maioria dos votos – 75% – fica de fora do governo. É impossível ser mais excludente. No sistema proporcional, um partido só poderá ter a maioria da Câmara dos Deputados se obtiver 50% dos votos nacionais”. (acrescento eu: um pouco menos no caso do Brasil, já que o voto brasileiro não é totalmente proporcional, mas “distritalizado” por Estados).
Logo, os problemas de ilegitimidade da representação eleita surgem com evidência e Almeida reproduz várias situações de fato na Inglaterra, onde, aliás, o voto distrital tirou Winston Churchill do Parlamento logo após ter ganho a 2ª Guerra Mundial.
“(Na Inglaterra), em 1983 os liberais-democratas britânicos tiveram 25,4% dos votos, mas somente 3,5% das cadeiras, um completo absurdo, uma completa falta de proporcionalidade, uma total injustiça distributiva quando se considera a relação entre votos e cadeiras. Em 1987 foram 22,6% dos votos que resultaram somente em 3,4% de cadeiras; em 1992 ocorreu que 17,8% dos votos foram traduzidos em somente 3,1% de assentos no parlamento. Em 1997 a injustiça foi menor, mas permaneceu: 16,7% dos votos os levaram a obter 7% de cadeiras. Daí para a frente, a situação só fez piorar: em 2001, 18,3% dos votos resultaram em 7,9% de assentos parlamentares; em 2005, 22,1% dos votos conquistaram 9,6% das cadeiras, e em 2010 a situação foi ainda pior, quando 23% dos votos resultaram em somente 8,8% de cadeiras”.
O poder da maioria, então, torna-se avassalador:
“Em 1983, Margaret Thatcher foi eleita primeira-ministra pela segunda vez, com seu partido obtendo 42,4% dos votos. O impressionante é que o Partido Conservador conquistou nada menos do que 61% das cadeiras do Parlamento, praticamente 20% a mais do que sua votação. Em 1987 a desproporção também ficou muito próxima disso: com somente 42,3%, obteve-se 57,9% dos assentos. Em 2001 foi a vez dessa injustiça distributiva favorecer o Partido Trabalhista: foram 40,7% de votos que resultaram na conquista de 62,5% das cadeiras. Em 2005, foram 35,2% de votos para o partido de Tony Blair, e eles conquistaram 55,2% de cadeiras. Isso seria intolerável no Brasil.”
E a proximidade com o eleitor garantiria a plena representatividade do eleito sobre o eleitor?
“Os defensores do voto distrital no Brasil afirmam que ele é bom porque há mais proximidade entre o eleito e o eleitor. Os distúrbios de Londres eclodiram no distrito de Tottenham, cujo representante é um negro de 39 anos chamado David Lammy nascido e criado em Tottenham. Na eleição de 2010, o comparecimento foi de 58,2%, ou seja, 41,8% dos eleitores não foram votar, talvez porque achassem que os candidatos em disputa não os representavam. Adicionalmente, Lammy teve 59,3% de votos. Isso significa que 40,7% de quem foi às urnas no distrito de Tottenham não têm representante no parlamento britânico. Lammy representa somente 34,5% de todos os eleitores de seu distrito, isto é, 65,5% não têm representantes. Assim, não surpreende que os eleitores que não se sintam representados tenham, utilizando seus aparelhos BlackBerry, organizando os distúrbios que vimos. O sistema eleitoral distrital cria as condições dos distúrbios que aconteceram em Londres porque se trata de uma forma de representação que joga no lixo uma enorme proporção de votos, ou seja, esses votos ficam sem representação no parlamento.”
Eduardo Graeff diz que “o debate teórico também vai ser fácil” em favor do voto distrital. Fácil, nada. O que é fácil é identificar a origem desta ideia: Guilherme Afif Domingues, José Serra, agora Eduardo Graeff… Só será fácil se, como de outras vezes, a mídia abafar os que falam que essa ideia é o que realmente é: a aposta dos tucanos e seus penduricalhos conservadores de voltarem ao poder que não conseguem pelo voto direto.
Quem hoje reclama das “emendas parlamentares”, do fisiologismo na representação política e do despejo de dinheiro nas campanhas eleitorais ganha, com o voto distrital, tudo isso em quantidades muito maiores, embora divididas em “pedacinhos distritais”. Para os cariocas, basta lembrar como Chagas Freitas construía suas maiorias: algumas bicas d’água nas favelas X, Y e Z garantiam um deputado “benfeitor” local.
Os nossos porta-vozes da “representatividade local” não querem outra coisa. Um “baixo clero” político que se mantenha com as piores práticas, a eliminação daqueles que buscam o voto de opinião e convicção e o poder exercido por uma casta incontestável, como foi a que imperou na obscura Era FHC.
Mas justiça seja feita: FHC eleger-se-ia deputado pelo distrito de Higienópolis. Afinal, a gente “diferenciada” não vota lá.

PS. Podendo, leia o artigo de Antonio Carlos Almeida, um trabalho sério e cheio de dados, embora ache discutíveis algumas de suas conclusões. Mas é assim a democracia não-distrital, nenhum pensamento é o “único”, como adoram que seja – o seu,claro – os neoliberais.
*Tijolaço

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