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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

domingo, outubro 09, 2011

O Brasil precisa de Serra e FHC

Sem paixões partidárias, sem extremismos ideológicos, preconceitos e com moralismos à parte, seria interessante que se fizesse nos dias atuais uma pesquisa de opinião pública mais específica em que se pudessem estabelecer comparações pormenorizadas entre o Brasil que veio até o final dos anos 90 e o Brasil que se inicia após a eleição do presidente Luis Inácio Lula da Silva.

Uma pesquisa de opinião que não fosse apenas para servir a campanhas eleitorais ou programas televisivos de partidos, onde por vezes a emoção conta mais que a razão, mas levantando questões efetivamente alicerçadas sobre a nova realidade do país, construída nos últimos oito anos nos campos econômicos, políticos e sociais, avaliando – com mais dados – suas causas e seus efeitos práticos.

É natural que em toda atividade humana o avanço, o progresso e o bem estar da sociedade sejam desejados, sonhados, trabalhados e – sobretudo – muitas vezes conquistados. Nem sempre, entretanto, na história das nações, essa premissa se fez valer. No caso do Brasil, desde o nosso descobrimento, diga-se a bem da verdade.

Vamos apenas citar como exemplo, já que mais recente, o golpe civil/militar de 1964/68, muito embora até aí se possam pinçar, mesmo com o retrocesso político e a supressão das liberdades democráticas, alguns avanços estruturais e superestruturais no país.

Fruto de uma opção ideológica e de um alinhamento total com a política de estado norte americana nos anos após a Segunda Grande Guerra, fugindo da “órbita soviética”, as elites brasileiras, seus estratos mais conservadores e reacionários, ao darem um golpe de estado no início da década de 60, expulsaram do poder político os setores mais liberais e de esquerda que vinham conquistando posições de destaque em governos como os de Getúlio Vargas, Juscelino Kubstcheck e João Goulart.

Esses governos, embora de origem, natureza e alianças partidárias distintas, tinham em comum, cada um à sua maneira, uma visão de futuro para o país. Mais do que isso, uma visão de independência, de autodeterminação e de criação e defesa de um parque industrial brasileiro. Muitos de seus integrantes abraçavam causas nacionalistas, populares e até mesmo a idéia de uma nação socialista.

A quebra da legalidade democrática em 1964/68, fruto do alinhamento estratégico acima citado, levou milhares e milhares de brasileiros a uma oposição que, tolhida pela censura, mas consentida e subjugada no Congresso, ainda assim venceu algumas eleições estaduais em 1965.

Com as prisões, cassações e perseguições, chegou a pegar em armas. Durante 21 anos a repressão entre nós se fez e de forma violenta, batendo e arrebentando segundo o eufemismo castrense, chegando a reunir opositores cujo leque ideológico variou de uma direita propositiva e nacionalista, passando por católicos conservadores e progressistas até uma esquerda guerrilheira socialista e internacionalista.

Com o correr dos anos e da reconquista da democracia, contudo, para desespero dos espíritos autoritários e saudosos de um regime fechado, o poder volta a ser disputado nas urnas. Através de sucessivas eleições o exercício desse poder é aceito e consagrado dentro de um mundo de configuração ainda capitalista, agora com suas regras neoliberais fortemente colocadas no tabuleiro, mas também aberto e cativo das possíveis opções, para milhões de seres humanos, entre as economias socialistas e capitalistas. Opção e conflito particularmente intenso nos países em desenvolvimento do chamado terceiro mundo, vítimas seculares da predação capitalista.

Nesse novo cenário, onde prosperaram as ideias do fim da História, do Estado mínimo, da economia regulada pelo mercado, das especulações financeiras sem regulamentação legal e, sobretudo, pela desintegração do bloco socialista na Europa de leste com o fim da União Soviética, com o surgimento de dúvidas e inseguranças ideológicas por aí geradas, era natural que se desse novo realinhamento no terreno da prática econômica e política mundial e, por conseguinte, na brasileira. As peças no tabuleiro se movimentavam com o propósito do cheque mate à opção socialista, com a palavra e a atitude agressiva da globalização econômica substituindo eufemisticamente o uso do substantivo imperialismo.

A emblemática queda do muro de Berlim e o esfacelamento de inúmeros Partidos Comunistas ao redor do mundo, além de lançar na orfandade milhões de cidadãos que ansiavam pelas transformações e avanços sociais, acabou por despertar nos esquerdistas de ocasião ou arrependidos, nos ‘pragmáticos’ liberais, e nas novas gerações crescidas dentro da propaganda neoliberal, a oportunidade de revelarem – aqueles – o seu verdadeiro caráter e ideologia há tantos anos sufocada e reprimida, e nas novas gerações o sonho do enriquecimento fácil e do consumismo desbragado. Isto para não nos aprofundarmos nas decisões “pragmáticas” tantas vezes invocadas em defesa do status quo. E no fechar de olhos à crescente cultura da corrupção.

Creio que não saiu de moda o aforismo “a ocasião faz o ladrão”. Pode-se, igualmente, também dizer que em política as circunstâncias fazem as opções ideológicas e partidárias. Não será de um, de cem ou de mil o número de pessoas que transitam de um lado para outro do espectro das ideias e da política partidária, consoante o canto da sereia. Essa liberdade de escolha, em si, não é condenável.

Qualquer um de nós tem o direito e a liberdade de fazer as escolhas e as opções políticas que quiser. É isso, pelo menos, o que pregam os democratas convictos da velha guarda ou os arrivistas. Temos é que manter alguma coerência com essas opções. Ou justificá-las com alguma honradez quando nos levamos a sério.

O que parece condenável, a meu ver, é constatar que homens minimamente dotados de conhecimentos que os credenciam à vida pública prepararem-se para o exercício do poder político mercê do jogo sujo e oportunista de se adaptarem às circunstancias de momento, a assumirem uma demagogia de linguagem rebuscada e pseudocientífica, a nadarem sempre a favor da correnteza, a dançarem conforme a música lhes é agradável e de ritmo conveniente.

Será essa, com certeza, a história política brasileira contemporânea que, entre inúmeros exemplos, evidencia o caso dos cidadãos José Serra e Fernando Henrique Cardoso, dois expoentes de uma, seja dita, esquerda política, que nada mais representou até hoje do que o sonho social democrata em ninhos de esquerda de matizes socialistas, enquanto ser de esquerda era a “moda”, ainda que arriscada e perigosa. Em particular dentro do âmbito muitas vezes elitista e acadêmico das universidades. Os caminhos do exílio e do banimento durante e após o golpe de 64 têm, a esse respeito, histórias bem diferentes para serem contadas.

A trajetória desses dois expoentes do PSDB é emblemática em vários sentidos: FHC pelo exercício aligeirado e elegante do mando político, mas desprovido de maior conteúdo; Serra pela obsessão em chegar à presidência da república, gabando-se de ser um dos brasileiros mais preparados para isso.

FHC comandou um país subalterno e dependente economicamente de empréstimos obtidos junto ao Fundo Monetário Internacional, vendendo a trinta dinheiros várias empresas públicas, incentivando o verdadeiro mensalão para a aprovação da reeleição em causa própria, deixando varrer para debaixo do tapete a grande negociata das privatizações, eliminando conquistas trabalhistas de décadas, mantendo um salário mínimo de fome, sucateando e mercantilizando a educação e as escolas e universidades, negligenciando a saúde, para lá indicando seu fiel escudeiro e até então protegido.

Essa escola de “bem governar”, que pretendeu permanecer 20 anos ou mais no poder federal (em parte conseguindo o seu intento no governo de São Paulo), foi – enquanto isso – gerando em seu ninho um quadro que levasse à frente o programa neoliberal com algumas tinturas menos ortodoxas, fazendo-o caminhar pelas instâncias do Ministério da Saúde, do governo do Estado de São Paulo e da prefeitura de São Paulo, mandatos nem todos eles concluídos, é bom lembrar, tamanha a obsessão do candidato ao cargo pretendido.

O Brasil desses dois homens, nesses tempos informatizados, em que a realidade muda com grande rapidez, se transformou também rapidamente num Brasil do passado; no Brasil dos envergonhados de serem brasileiros; no Brasil dos subalternos, da política externa submissa, dos que adoram encher a boca para falar mal do seu país; no Brasil dos arrogantes de títulos acadêmicos e de togas acima do bem e do mal, dos que comem peru e pensam arrotar caviar; no Brasil das citações de pé de página; no Brasil em que muitos insistem na justiça mais flexível para a Casa Grande e na mais rígida obediência às leis para a senzala; no Brasil dos que ainda anseiam por golpes militares; no Brasil da improvisação no lugar do conhecimento, muitas vezes maquiada de competência; no Brasil dos armários cheios de esqueletos físicos e morais; no Brasil de um passado que tem medo da verdade; no Brasil de uma imprensa chantagista e irresponsável, legando aos governos de Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Roussef, o pesado fardo de consertar muita sujeira e muita incompetência de se passado mais recente, tão evidente e tão escondido pela mídia.

Vistos os fatos por essa perspectiva, mas com os olhos confiantes postos no futuro e nas transformações que vão, pouco a pouco acontecendo interna e externamente, é que se pode afirmar: O BRASIL PRECISA DE SERRA E FHC!

O Brasil precisa de Serra e FHC para esquecer o passado;

O Brasil precisa de Serra e FHC para se lembrar de não mais abaixar servilmente a cabeça para países arrogantes e de natureza imperialista;

O Brasil precisa de Serra e FHC para mostrar a si mesmo e ao mundo que outro país é possível;

O Brasil precisa de Serra e de FHC para sempre se lembrar que não é preciso chegar ao limite da irresponsabilidade;

O Brasil precisa de Serra e de FHC para, desmentindo-os, jamais privatizar sua riqueza e entregar o país a grupos internacionais;

O Brasil precisa de Serra e FHC para mostrar, na prática, que criar 15 milhões de empregos em carteira não é uma questão de promessa eleitoral;

O Brasil precisa de Serra e FHC para, paradoxalmente ignorando-os, mostrar ao povo brasileiro como é possível manter em mãos do país uma empresa como a Petrobrás, sem descaracterizá-la ou entregá-la a grupos estrangeiros;

O Brasil precisa de Serra e FHC para, ao contrário deles, perceber que o mundo começa à nossa volta, com os nossos vizinhos da América do Sul e do Caribe;

O Brasil precisa de Serra e FHC, enfim, para sacudir a poeira do atraso, o colonialismo cultural e assumir em definitivo o seu destino de grande nação.

Na parede da ante-sala desse novo país que, tudo indica, está sendo construído, será preciso colocar o retrato emoldurado desses dois personagens. E olhando-o, sem qualquer saudade, ainda assim invocarmos o grande poeta mineiro usando o tempo do verbo de nossa lamentação no passado: “E como doeu!”.

Izaías Almada, escritor e dramaturgo, colunista do NR. Ilustrações do blog do ilustrador e caricaturista Baptistão
*Notaderodapé

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