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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

sábado, junho 02, 2012

Educação hermética

A educação é um procedimento, uma maturação, uma paciência, um estado de latência que precisa da calma para que alguma erupção seja possível. Aprendi com Warat que a sensibilidade foi prostituída pelo Direito. Já cheguei a tirar a maiúscula do Direito. Chamava o Direito de direito, com todo o desprezo inútil que a repulsa me trazia. A possibilidade de cura, de resgate, de renovação e de transcendência, me moveu para as montanhas e para os infernos escuros. Peguei carona com a sabedoria hermética, esticando uma corda invisível entre a arrogância e a mais suave humildade. E caminhando como um equilibrista num abismo de sentido, fui. Warat sempre acenou, sem porém mostrar. Todo mostrar é uma castração. É como uma nudez escancarada que nos broxa a alma. Sidarta de Herman Hesse me ensinou que o caminho final, não pode ser ensinado. Que não há doutrina ou narração prévia para o caminho de ouro que aguarda e que guarda a resposta que é própria de cada um que a ele se aventura e se dispõe com a gana de um guerreiro, com o desapego de um peregrino e com a interrogação posta nas vistas. 
O Manifesto do Surrealismo Jurídico de Warat foi um texto importante. Aprendi o valor pulsante do respeito ao inconsciente. Aprendi que a sensibilidade ensina tanto quanto o pensamento. Aprendi que sem dor não há criação, e que sem criação não há possibilidade que valha a pena se os destinos forem altos, onde o ar é rarefeito e calmo. Percebendo, com o vagar da meditação de um vinho e de uma visita de Vinicius de Moraes, noto que o aprender é um desaprender, como alguém já disse. É trocar a certeza que não é nossa, por uma certeza que, por infinda construção, nunca é uma certeza merecedora de um "c" maiúsculo. A possibilidade de permitir o intertexto e o plágio sensível sem o cancro da culpa, foi um presente mágico. 
Quem pretende educar precisa, sobretudo, se desvincular da culpa. Quem educa deve se des-culpar. Esquecer a obrigação, por um querer bem propositado, que é sempre um propósito que vem do coração...de onde mais poderia vir? A acadêmia de Direito tem formado máquinas, andróides moribundos. O animal racional, deixou de ser animal, para se tornar um mecânico racional. Um operador que só conhece a solução com o scanner da inteligência artificial, como esses mecânicos artificiais das concessionários de hoje. Se a tecnologia nos facilitou a vida, no mesmo grau e fundura também nos assassinou o pedaço bicho. Um I-pad e um bom coração farão milagres no futuro, eu sei. O ser-bicho do ser-humano foi condenado em praça pública. Levado à forca pela história da indústria, pela overdose que é uma tão própria reação humana para com todos os seus entusiasmos juvenis. A tecnologia foi um entusiasmo. E hoje há o arrependimento de um traidor que só é traidor porque agiu sem amor. As possibilidades da técnica e do uso da razão técnica, como um viagra que levanta um pau morto, maquia a natureza, a aceitação do estado. 
O Direito como gnose autorizada da razão moderna, pegou carona com o processo educacional que se iniciou com a proposta de evangelização universal da primeira Igreja Cristã no medievo. A onipotência do Deus católico se estendeu às Uni-versidades. As Uni-versidades inventaram um padre secular e a ele deram o nome de professor. E o professor, de lá pra cá, teme a perda do emprego e a sua potência educacional, como os padres temiam o sopro de fogo do Diabo e a perda da possibilidade do paraíso. O paraíso do professorado é manter a quantidade de horas-aula e assegurar que nada escape do auto-polígrafo criado por eles próprios... que é velho como a bengala velha de alguém que já morreu e ainda não sabe.
Mas é que o estudante de hoje, que é o presente da história que se propõe a perder a novela, a convivência com a família e a vagabundagem, já é um produto-transcendente em relação ao modelo de educação do qual muitos ainda se valem como esconderijo. O autêntico estudante de hoje - falemos dos autênticos para poder construir projetos - sabe mais que qualquer professor, porque sabe que só saber é apenas metade do caminho. Sabe que precisa achar o seu caminho, se pretende integridade de corpo e alma, de seu masculino e de seu feminino, para ser anjo. Sabe que precisa de pistas para encontrar a comida que mais agrade seu paladar exigente, e não de regurgitações teóricas e outros vômitos. O estudante de hoje quer fruta fresca, sabe que o futuro lhe cobrará criatividade, inclusive de seu próprio paladar. Sabe que terá que ser referência - não a de alguém, mas de si mesmo. 
A carne, o choro, a meditação, o abraço - eis o que se inconscientizou no Direito. A tábua de esmeralda, imaginura que compõe o quadro de trânsito de Hermes Trismegistus - deus da mitologia grega -, demonstra que o caos raso é o primeiro passo depois do nada. Para ser mais que nada, é preciso sobretudo admitir a desordem como condição, perceber que é preciso cagar nas próprias fraldas e cheirar a própria merda para depois aprender o caminho do vaso. A pureza de um bebê permite o cheiro da própria merda. Depois do caos, a tábua de esmeralda indica que a  maturidade da consciência é o lugar privilegiado do maniqueísmo. O maniqueísmo, que se aurora como uma pepita bruta de ouro, deve brilhar pelo polimento do tempo. O tempo e a paciência com o próprio engatinhar do espírito, dão o lustro para que o ouro brilhe. As duas pontas da oposição flertam, se aproximam, quase se beijam. Tocam lábios sem a cena da língua, sem o trejeito do movimento de cabeças e a invasão do outro com a língua. Na tábua de esmeralda as serpentes se entrelaçam sem contato de cabeças. O beijo que o espírito dá com a sua integração e com a sua potência é um beijo sem língua. O distante maniqueísmo de antes é agora uma grande zona gris, é a grande porção da curvatura de Gauss. É mais sim e não do que certeza. Onde está luz, se esconde a sombra - percebe o jovem asceta, que está pronto para a transformação, para a ascendência, para a nova consciência, que não é nem boa, nem má, mas outra. A possibilidade de ser outro, é o que de melhor podemos desejar a alguém e ao mundo. A lei de Hermes é supraconstitucional, e não pode ser conquistada nem com o pensamento, nem com a técnica. Nem com a velocidade deste tempo doente, nem com amores que tem mais medo que vontade. Nem com nenhum professor que não saiba largar a mão de quem se propõe a educar, seja por usá-la como apoio contra sua insegurança, seja pela cegueira do seu falso poder.  

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