A Idade Mendes
Leandro Fortes
Saída pela direita
No
fim das contas, a função primordial do ministro Gilmar Mendes à frente
do Supremo Tribunal Federal foi a de produzir noticiário e manchetes
para a falange conservadora que tomou conta de grande parte dos veículos
de comunicação do Brasil. De forma premeditada e com muita astúcia,
Mendes conseguiu fazer com que a velha mídia nacional gravitasse em
torno dele, apenas com a promessa de intervir, como de fato interveio,
nas ações de governo que ameaçavam a rotina, o conforto e as atividades
empresariais da nossa elite colonial. Nesse aspecto, os dois habeas corpus
concedidos ao banqueiro Daniel Dantas, flagrado no mesmo crime que
manteve o ex-governador do Distrito Federal José Roberto Arruda no
cárcere por 60 dias, foram nada mais que um cartão de visitas. Mais
relevante do que tudo foi a capacidade de Gilmar Mendes fixar na pauta e
nos editoriais da velha mídia a tese quase infantil da existência de um
Estado policialesco levado a cabo pela Polícia Federal e, com isso,
justificar, dali para frente, a mais temerária das gestões da Suprema
Corte do País desde sua criação, há mais cem anos.
Num
prazo de pouco menos de dois anos, Mendes politizou as ações do
Judiciário pelo viés da extrema direita, coisa que não se viu nem
durante a ditadura militar (1964-1985), época em que a Justiça andava de
joelhos, mas dela não se exigia protagonismo algum. Assim, alinhou-se o
ministro tanto aos interesses dos latifundiários, aos quais defende sem
pudor algum, como aos dos torturadores do regime dos generais, ao se
posicionar publicamente contra a revisão da Lei da Anistia, de cuja à
apreciação no STF ele se esquivou, herança deixada a céu aberto para o
novo presidente do tribunal, ministro Cezar Peluso. Para Mendes, tal
revisão poderá levar o País a uma convulsão social. É uma tese tão
sólida como o conto da escuta telefônica, fábula jornalística que teve o
presidente do STF como personagem principal a dialogar canduras com o
senador Demóstenes Torres, do DEM de Goiás.
A
farsa do grampo, publicada pela revista Veja e repercutida, em série,
por veículos co-irmãos, serviu para derrubar o delegado Paulo Lacerda do
comando da PF, com o auxílio luxuoso do ministro da Defesa, Nelson
Jobim, que se valeu de uma mentira para tal. E essa, não se enganem, foi
a verdadeira missão a ser cumprida. Na aposentadoria, o presidente Luiz
Inácio Lula da Silva terá tempo para refletir e registrar essa história
amarga em suas memórias: o dia em que, chamado “às falas” por Gilmar
Mendes, não só se submeteu como aceitou mandar para o degredo, em
Portugal, o melhor e mais importante diretor geral que a Polícia Federal
brasileira já teve. O fez para fugir de um enfrentamento necessário e,
por isso mesmo, aceitou ser derrotado. Aliás, creio, a única verdadeira
derrota do governo Lula foi exatamente a de abrir mão da política de
combate permanente à corrupção desencadeada por Lacerda na PF para
satisfazer os interesses de grupos vinculados às vontades de Gilmar
Mendes.
O presidente do STF deu centenas de
entrevistas sobre os mais diversos assuntos, sobretudo aqueles sobre os
quais não poderia, como juiz, jamais se pronunciar fora dos autos. Essa
é, inclusive, a mais grave distorção do sistema de escolha dos nomes ao
STF, a de colocar não-juízes, como Mendes, na Suprema Corte, para julgar
as grandes questões constitucionais da nação. Alheio ao cargo que
ocupava (ou ciente até demais), o ministro versou sobre tudo e sobre
todos. Deu força e fé pública a teses as mais conservadoras. Foi um
arauto dos fazendeiros, dos banqueiros, da guarda pretoriana da ditadura
militar e da velha mídia. Em troca, colheu farto material favorável a
ele no noticiário, um relicário de elogios e textos laudatórios sobre
sua luta contra o Estado policial, os juízes de primeira instância, o
Ministério Público e os movimentos sociais, entre outros moinhos de
vento vendidos nos jornais como inimigos da democracia.
Na imprensa nacional, apenas CartaCapital, por meio de duas reportagens (“O empresário Gilmar” e “Nos rincões de Mendes”),
teve coragem de se contrapor ao culto à personalidade de Mendes
instalado nas redações brasileiras como regra de jornalismo. Por essa
razão, somos, eu e a revista, processados pelo ministro. Acusa-nos, o
magistrado, de má fé ao divulgar os dados contábeis do Instituto
Brasiliense de Direito Público (IDP), uma academia de cursinhos
jurídicos da qual Mendes é sócio. Trata-se de instituição construída com
dinheiro do Banco do Brasil, sobre terreno público praticamente doado
pelo ex-governador do DF Joaquim Roriz e mantido às custas de contratos
milionários fechados, sem licitação, com órgãos da União.
Assim,
a figura de Gilmar Mendes, além de tudo, está inserida eternamente em
um dos piores momentos do jornalismo brasileiro. E não apenas por ter
sido o algoz do fim da obrigatoriedade do diploma para se exercer a
profissão, mas, antes de tudo, por ter dado enorme visibilidade a maus
jornalistas e, pior ainda, fazer deles, em algum momento, um exemplo
servil de comportamento a ser seguido como condição primordial de
crescimento na carreira. Foi dessa simbiose fatal que nasceu não apenas a
farsa do grampo, mas toda a estrutura de comunicação e de relação com a
imprensa do STF, no sombrio período da Idade Mendes.
Emblemática
sobre essa relação foi uma nota do informe digital “Jornalistas &
Companhia”, de abril de 2009, sobre o aniversário do publicitário Renato
Parente, assessor de imprensa de Gilmar Mendes no STF (os grifos são
originais):
“A festa de aniversário de 45 anos de Renato Parente,
chefe do Serviço de Imprensa do STF (e que teve um papel importante na
construção da TV Justiça, apontada como paradigma na área da tevê
pública), realizada na tarde do último domingo (19/4), em Brasília,
mostrou a importância que o Judiciário tem hoje no cenário nacional.
Estiveram presentes, entre outros, a diretora da Globo, Sílvia Faria, a colunista Mônica Bergamo, e o próprio presidente do STF, Gilmar Mendes, entre outros.”
Olha, quando festa de aniversário de assessor de imprensa serve para
mostrar a importância do Poder Judiciário, é sinal de que há algo muito
errado com a instituição. Essa relação de Renato Parente com
celebridades da mídia é, em todos os sentidos, o pior sintoma da doença
incestuosa que obriga jornalistas de boa e má reputação a se misturarem,
em Brasília, em cerimônias de beija-mão de caráter duvidoso. Foi, como
se sabe, um convescote de sintonia editorial. Renato Parente é o chefe
da assessoria que, em março de 2009, em nome de Gilmar Mendes, chamou o
presidente da Câmara, deputado Michel Temer (PMDB-SP), às falas, para
que um debate da TV Câmara
fosse retirado do ar e da internet. Motivo: eu critiquei o
posicionamento do presidente do STF sobre a Operação Satiagraha e fiz
justiça ao trabalho do delegado federal Protógenes Queiroz, além de
citar a coragem do juiz Fausto De Sanctis ao mandar prender, por duas
vezes, o banqueiro Daniel Dantas.
Certamente em
consonância com o “paradigma na área de tevê pública” da TV Justiça
tocada por Renato Parente, a censura na Câmara foi feita com a
conivência de um jornalista, Beto Seabra, diretor da TV Câmara, que
ainda foi mais além: anunciou que as pautas do programa “Comitê de
Imprensa”, a partir dali, seriam monitoradas. Um vexame total. Denunciei
em carta aberta aos jornalistas e em todas as instâncias corporativas
(sindicatos, Fenaj e ABI) o ato de censura e, com a ajuda de diversos
blogs, consegui expor aquela infâmia, até que, cobrada publicamente, a
TV Câmara foi obrigada a capitular e recolocar o programa no ar, ao
menos na internet. Foi uma das grandes vitórias da blogosfera, até
então, haja vista nem um único jornal, rádio ou emissora de tevê, mesmo
diante de um gravíssimo caso de censura e restrição de liberdade de
expressão e imprensa, ter tido coragem de tratar do assunto. No
particular, no entanto, recebi centenas de e-mails e telefonemas de
solidariedade de jornalistas de todo o país.
Não
deixa de ser irônico que, às vésperas de deixar a presidência do STF,
Gilmar Mendes tenha sido obrigado, na certa, inadvertidamente, a se
submeter ao constrangimento de ver sua gestão resumida ao caso Daniel
Dantas, durante entrevista no youtube.
Como foi administrada pelo Google, e não pelo paradigma da TV Justiça, a
sabatina acabou por destruir o resto de estratégia ainda imaginada por
Mendes para tentar passar à história como o salvador da pátria ameaçada
pelo Estado policial da PF. Ninguém sequer tocou nesse assunto, diga-se
de passagem. As pessoas só queriam saber dos HCs a Daniel Dantas, do
descrédito do Judiciário e da atuação dele e da família na política de
Diamantino, terra natal dos Mendes, em Mato Grosso. Como último recurso,
a assessoria do ministro ainda tentou tirar o vídeo de circulação, ao
menos no site do STF, dentro do sofisticado e democrático paradigma de
tevê pública bolado por Renato Parente.
Como
derradeiro esforço, nos últimos dias de reinado, Mendes dedicou-se a dar
entrevistas para tentar, ainda como estratégia, vincular o próprio nome
aos bons resultados obtidos por ações do Conselho Nacional de Justiça
(CNJ), embora o mérito sequer tenha sido dele, mas de um juiz de
carreira, Gilson Dipp. Ministro do Superior Tribunal de Justiça e
corregedor do órgão, Dipp foi nomeado para o cargo pelo presidente Lula,
longe da vontade de Gilmar Mendes. Graças ao ministro do STJ, foi feita
a maior e mais importante devassa nos tribunais de Justiça do Brasil, até então antros estaduais intocáveis comandados, em muitos casos, por verdadeiras quadrilhas de toga.
É
de Gilson Dipp, portanto, e não de Gilmar Mendes, o verdadeiro registro
moralizador do Judiciário desse período, a Idade Mendes, de resto, de
triste memória nacional.
Mas que, felizmente, se encerra hoje.
*GilsonSampaio
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