Noam Chomsky: Plutonomía e precários: O declive da economia estadunidense
Via O Diário.info
Noam Chomsky*
Estamos a viver uma autêntica regressão para tempos muito negros. Se se pensa que isto está a passar-se no país mais poderoso e rico da história, a catástrofe parece inevitável. Há que fazer alguma coisa, e fazê-lo rapidamente, com dedicação e de forma sustentável. Não será simples. Haverá, seguramente, obstáculos, dificuldades e fracassos. Mais: se o espírito surgido o ano passado, aqui e noutros rincões do mundo, não cresce e não consegue converter-se numa força de peso no mundo social e político, as possibilidades de um futuro digno não serão muito grandes.
O
movimento «Ocupemos» teve um desenvolvimento estimulante. Até onde a
minha memória alcança, não houve nunca nada parecido. Consegue reforçar
as suas ligações e as associações que se criaram nestes meses poderão
protagonizar, ao longo do obscuro período que se avizinha – não haverá
uma vitória rápida –, um momento decisivo na história dos Estados
Unidos.
A singularidade deste movimento não
deveria surpreender. Ao cabo e ao resto, vivemos uma época inédita, que
arranca em 1970 e que marcou um autêntico ponto de inflexão na história
dos Estados Unidos. Durante séculos, desde o seu começo como país, os
EUA foram sempre uma sociedade em desenvolvimento. Se o foram sempre na
direcção certa é outra história. Mas em termos gerais, o progresso
pressupôs riqueza, industrialização, desenvolvimento e esperança.
Existia uma expectativa mais ou menos larga de que continuaria sempre
assim. E continuou, inclusive nos tempos mais negros.
Tenho
idade suficiente para recordar a Grande Depressão. Em meados dos anos
30 a situação era objectivamente mais dura que a actual. O ânimo, no
entanto, era outro. Havia a sensação generalizada de que sairíamos em
frente. Mesmo as pessoas sem emprego, entre os quais se contavam alguns
parentes meus, pensavam que as coisas melhorariam. Existia um movimento
sindical militante, especialmente no âmbito do Congresso de Organizações
Industriais. E começaram a acontecer greves com ocupação de fábricas
que aterrorizavam o mundo empresarial – basta consultar a imprensa da
época. Uma ocupação, de facto, é o passo prévio à autogestão das
empresas. Um tema, diga-se de passagem, que está bastante presente na
agenda actual. Apesar dos tempos serem duros havia uma sensação, como
dizia acima, de que se acabaria por «sair da crise». Hoje as coisas são
diferentes. Entre boa parte da população dos Estados Unidos reina uma
forte falta de esperança que por vezes se converte em desespero. Esta
realidade é muito nova na história norte-americana. E tem, desde logo,
uma base objectiva.
A classe trabalhadora
Nos
anos 30 do século passado os trabalhadores desempregados podiam pensar
em recuperar os seus postos de trabalho. Actualmente, com um nível de
desemprego semelhante ao existente durante a Grande Depressão, é
improvável, se a tendência persistir, que um trabalhador manufactureiro
recupere o seu posto de trabalho. A mudança teve lugar por volta de 1970
e obedece a muitas razões. Um factor chave, bem analisado pelo
historiador económico Robert Brenner, foi a queda da taxa de lucro no
sector manucfatureiro. Mas houve outros. Por exemplo a reversão de
vários séculos de industrialização e desenvolvimento. Naturalmente, a
produção de manufacturas continuou do outro lado do oceano, mas em
prejuízo, e não em benefício, dos trabalhadores. Juntamente com estas
mudanças deu-se uma significativa deslocação da economia de produção –
de coisas que as pessoas necessitavam ou podiam usar – para a
manipulação financeira. Foi pois, na verdade, quando a financeirização
da economia se começou a estender.
Os bancos
Antes
de 1970 os bancos eram bancos. Faziam o que se espera que um banco faça
numa economia capitalista: pegar em fundos de uma conta bancária, por
exemplo, e dar-lhes uma finalidade potencialmente útil como ajudar uma
família a comprar a sua casa ou a mandar um filho à escola. Isto mudou
de forma dramática nos anos setenta. Até então, e desde a Grande
Depressão, não tinha havido crises financeiras. Os anos cinquenta e
sessenta foram um período de grande crescimento, o mais alto da história
dos Estados Unidos e possivelmente da história económica. E foi
igualitário. À parte mais baixa da sociedade também a coisa lhe correu
bem. Muitas pessoas tiveram acesso a formas de vida mais razoáveis – de
«classe média», como se dizia aqui, de «classe trabalhadora», noutros
países. Os anos sessenta aceleraram o processo. Depois de uma década um
pouco sombria, o activismo daqueles anos civilizou o país, muitas vezes
de forma duradoura. Com a chegada dos anos setenta deram-se uma série de
mudanças abruptas e profundas: a desindustrialização, a deslocalização
da produção e um maior protagonismo das instituições financeiras, que
cresceram enormemente. Entre os anos cinquenta e sessenta verificou-se
um forte desenvolvimento do que décadas depois se conheceria como a
economia de alta tecnologia: computadores, internet e revolução das
tecnologias da informação, que se desenvolveram substancialmente no
sector estatal. Estas mudanças geraram um círculo vicioso. Conduziram a
uma crescente concentração da riqueza nas mãos do sector financeiro, mas
não beneficiaram a economia (antes a prejudicaram, tal como à
sociedade).
Política e dinheiro
A
concentração da riqueza trouxe consigo uma maior concentração do poder
político. E a concentração do poder político deu lugar a uma legislação
que intensificaria e aceleraria o ciclo. Esta legislação, no essencial
da responsabilidade dos dois partidos, comportou a introdução de novas
políticas fiscais, e medidas desreguladoras do governo das empresas.
Juntamente com este processo, deu-se um importante aumento do custo das
eleições, o que ainda tornou os partidos políticos mais dependentes dos
bolsos do sector empresarial.
Na realidade, os
partidos começaram a degradar-se por diferentes vias. Se uma pessoa
aspirava a um lugar no Congresso, como a presidência de uma comissão,
por exemplo, o normal era que o obtivesse a partir da sua experiência e
capacidade pessoal. Apenas num par de anos depois, tiveram que começar a
contribuir para os fundos do partido para o conseguir, um tema que foi
bem estudado por várias pessoas, entre as quais Tom Ferguson. Como dizia
acima, isto aumentou a dependência dos partidos do sector empresarial,
sobretudo do sector financeiro.
Este ciclo
acabou com uma imensa concentração da riqueza, basicamente nas mãos do
1% mais rico da população. Entretanto, abriu-se um período de estagnação
e inclusive de decadência da maioria das pessoas. Alguns continuaram a
subir, mas através de meios artificiais como o alargamento da jornada de
trabalho, o recurso ao crédito e ao sobre-endividamento ou a aposta em
investimentos especulativos como as que levaram à recente bolha
imobiliária. Rapidamente, a jornada de trabalho acabou por ser mais
longa nos Estados Unidos que em países industrializados como o Japão e
outros na Europa. O que se verificou, definitivamente, foi um período de
estagnação e uma queda para a maioria, simultaneamente com uma forte
concentração da riqueza. O sistema político começou assim a
dissolver-se.
Sempre existiu uma brecha a
separar a política institucional da vontade popular. Agora, no entanto,
ela cresceu de forma astronómica. Não é difícil verificá-lo. Basta ver o
que está a acontecer com o grande tema que preocupa Washington: o deficit. O grande público pensa, e com razão, que o deficit
não é o problema principal. E na verdade não é. A questão importante é a
falta de emprego. No entanto há uma comissão para o deficit mas não há
para a falta de emprego. No que respeita ao deficit o grande
público tem a sua posição. As sondagens testemunham-no. De forma clara,
as pessoas apoiam uma maior pressão fiscal sobre os ricos, a reversão da
tendência regressiva destes anos e a preservação de certas prestações
sociais. As conclusões da comissão sobre o deficit seguramente
dirão o contrário. O movimento de ocupação poderá proporcionar uma base
material para neutralizar este punhal apontado ao coração do país.
Plutonomia e precários
Para
o grosso da população – 99% segundo o movimento Ocupemos – estes tempos
tem sido particularmente duros, e a situação poderá ainda piorar. De
facto, poderemos assistir a um declive irreversível. Para 1% - e
inclusive menos, 0,1% - tudo vai bem. Estão mais ricos que nunca, mais
poderosos que nunca e controlam o sistema político, de costas voltadas
para a maioria. Se ninguém o impede por que não continuar assim?
Peguemos
no caso do Citigroup. Durante décadas foi um dos bancos de investimento
mais corruptos. Apesar disso foi resgatado, uma e outra vez, com o
dinheiro dos contribuintes. Primeiro Reagan e agora uma vez mais. Não
insistirei no tema da corrupção, mas ele é bastante alucinante. Em 2005 o
Citigroup imprimiu uns folhetos com o título: «Plutonomia: comprar
luxo, explicar os desequilíbrios globais». Os folhetos incitavam os
investidores a colocar o dinheiro num «índice de plutonomia». «O mundo –
anunciavam – está a dividir-se em dois blocos: a plutonomia e o resto».
A
noção de plutonomia apela aos ricos, aos que compram bens de luxo e
tudo o que isto implica. Os folhetos sugeriam que a inclusão no «índice
de plutonomia» contribuiria para melhorar os rendimentos dos mercados
financeiros. O resto podia ser inoportuno. Não importava. Na realidade,
não eram necessários. Estavam ali para sustentar um Estado poderoso, que
resgataria os ricos no caso de se meterem em problemas. Agora, estes
sectores costumam chamar-se «precários» - pessoas que vivem uma
existência precária na periferia da sociedade. Só que cada vez é menos
periférica. Está a tornar-se uma parte substancial da sociedade
norte-americana e do mundo. E os ricos não vêem mal nisso.
Por
exemplo, o ex-presidente da Reserva Federal, Alan Greenspan, chegou a
ir ao Congresso durante um mandato de Clinton explicar as maravilhas do
modelo económico que tinha a honra de supervisionar. Foi pouco antes de
rebentar o crack em que ele teve claríssima responsabilidade. E
ainda lhe chamavam São Alan e os economistas profissionais não
duvidaram em descrevê-lo como um dos maiores. Para mim, grande parte do
êxito económico tinha que ver com a «crescente insegurança laboral». Se
os trabalhadores necessitam de segurança, se fazem parte dos precários,
se vivem vidas precárias, renunciarão as suas necessidades. Não tentarão
conseguir melhores salários ou melhores prestações sociais.
Tornar-se-ão supérfluos e será fácil livrarem-se deles. Isto é,
tecnicamente falando, o que Greenspan chamava uma economia «saudável». E
era elogiado e muito admirado por isso.
A
situação está assim: o mundo está-se a dividir em plutonomia e precários
o 1 e os 99 por cento, na imagem propagada pelo movimento Ocupemos. Não
se trata de números exactos, mas a imagem é correcta. Agora é a
plutonomia que tem a iniciativa e poderá continuar assim. Se ocorrer a
regressão histórica que teve início nos anos setenta do século passado
poderá tornar-se irreversível. Tudo indica que vamos nessa direcção. O
movimento Ocupemos é a primeira e a maior reacção popular a esta
ofensiva. Poderá neutralizá-la. Mas para isso é mester assumir que a
luta será longa e difícil. Não se obterão vitórias da noite para o dia. É
preciso criar estruturas novas, sustentáveis, que ajudem a atravessar
estes tempos difíceis e a obter triunfos maiores. Há um sem número de
coisas que, de facto poderão fazer-se.
Por um movimento de ocupação dos trabalhadores
Já
o mencionei antes. Nos anos trinta do século passado as greves com
ocupação dos locais de trabalho eram uma das acções mais efectivas do
movimento operário. A razão era simples: tratava-se do passo prévio à
tomada das fábricas. Nos anos setenta, quando o novo clima de
contra-reforma começava a instalar-se, ainda se passavam coisas
importantes. Em 1977, por exemplo, a empresa US Steel decidiu
fechar uma das suas sucursais em Youngstown, Ohio. Em vez de
simplesmente se irem embora, os trabalhadores e a comunidade propuseram
unir-se e comprar a empresa aos proprietários para depois a converter
numa empresa autogerida. Não ganharam. Mas a terem conseguido o apoio
popular suficiente, provavelmente tê-lo-iam conseguido. Gar Alperovitz e
Staufhton Lynd, os advogados dos trabalhadores, analisaram
detalhadamente esta questão. Tratou-se, em suma, de uma vitória parcial.
Perderam mas geraram outras iniciativas. Isto explica que hoje, ao
longo de Ohio e de muitos outros locais, tenham surgido centenas, talvez
milhares de empresas de propriedade comunitária, nem sempre pequenas,
que poderão converter-se em empresas autogeridas. E esta sim é uma boa
base para uma revolução real.
Uma coisa
semelhante se passou na periferia de Boston há aproximadamente um ano.
Uma multinacional decidiu encerrar uma instalação rentável que produzia
mercadorias de alta tecnologia. Evidentemente, para eles não era
suficientemente rentável. Os trabalhadores e os sindicatos propuseram-se
comprá-la e geri-la eles próprios. A multinacional recusou,
provavelmente por consciência de classe. Creio que não acham graça
nenhuma a que estas coisas aconteçam. Se tivesse havido apoio popular
suficiente, semelhante ao actual movimento de ocupação das ruas,
possivelmente teriam tido êxito.
E não é o único
processo deste tipo que está a acontecer. De facto, deram-se alguns com
uma entidade maior. Não há muito tempo, o presidente Barack Obama tomou
o controlo estatal da indústria automóvel, propriedade que basicamente
estava nas mãos de uma miríade de accionistas. Tinha várias
possibilidades. Mas escolheu esta: recuperá-la com o objectivo de a
devolver aos seus donos, ou a um tipo de propriedade idêntico que
mantivesse o seu status tradicional. Outra possibilidade era entregá-la
aos trabalhadores, estabelecendo as bases de um sistema industrial
autogerido que produzisse bens necessários para as pessoas. São muitas,
de facto, os bens que precisamos. Todos sabem ou deveriam saber que os
Estados Unidos têm um enorme atraso em matéria de transportes de alta
velocidade. É uma questão séria, que não só afecta a maneira como nós
vivemos, mas também a economia. Tenho uma estória pessoal a propósito
disso. Há uns meses, tive que proferir uma série de palestras em França.
Tinha de tomar um comboio de Avignon, no sul, até ao aeroporto Charles
de Gaulle, em Paris. A distância é a mesma entre Washington DC e Boston.
Demorei duas horas. Não sei se já tomaram o comboio que liga Washington
a Boston. Anda à mesma velocidade de há sessenta anos, quando a minha
mulher e eu o tomámos pela primeira vez. É um escândalo.
Não
há nada que impeça de se fazer nos Estados Unidos o que se faz na
Europa. Existe capacidade e força de trabalho qualificada. Faria falta
um pouco mais de apoio popular, mas o impacte na economia seria notável.
O assunto, no entanto, é ainda mais surrealista. Na altura em que se
descartou esta opção, a administração Obama enviou o seu secretário dos
transportes a Espanha para conseguir ver a possibilidade de comprar
comboios de alta velocidade. Isto poderia ter-se feito na cintura
industrial do norte dos Estados Unidos, mas a empresa foi desmantelada.
Não são pois razões económicas as que impedem o desenvolvimento de um
sistema ferroviário robusto. São razões de classe que reflectem a
debilidade da mobilização popular.
Alteração climática e armas nucleares
Até
aqui limitei-me a questões domésticas, mas há dois desenvolvimentos
perigosos de âmbito internacional, uma espécie de sombra negra que paira
sobre toda a análise. Pela primeira vez na história da humanidade há
ameaças reais à sobrevivência das espécies.
Uma
delas anda à nossa volta desde 1945. É uma espécie de milagre têrmo-la
fintado. É a ameaça da guerra nuclear, das armas nucleares. Ainda que
não se fale muito disso, esta ameaça não deixou de crescer com o actual
governo e os seus aliados. E há que fazer alguma coisa antes que
tenhamos problemas sérios.
A outra ameaça,
naturalmente, é a catástrofe ambiental. Praticamente todos os países do
mundo estão a tentar fazer alguma coisa sobre isto, ainda que de forma
muito vacilante. Os Estados Unidos também estão a fazer, mas para
acelerar a ameaça. São o único dos grandes que não fez nada de
constructivo para proteger o meio ambiente, nem sequer deram ainda o
primeiro passo. Mais, de alguma forma estão a fazer força ao contrário.
Tudo isto está ligado à existência de um gigantesco sistema de
propaganda, que o mundo dos negócios desenvolve com orgulho e
desfaçatez, com o objectivo de convencer as pessoas que a mudança
climática é uma patranha dos progressistas. «Por que razão fazer caso
destes cientistas?»
Estamos a viver uma
autêntica regressão para tempos muito negros. E não o digo por graça. De
facto, se se pensa que isto está a passar-se no país mais poderoso e
rico da história, a catástrofe parece inevitável. Numa geração ou duas,
qualquer outra coisa de que falemos não terá importância. Há que fazer
alguma coisa, e fazê-lo rapidamente, com dedicação e de forma
sustentável. Não será simples. Haverá, seguramente, obstáculos,
dificuldades e fracassos. Mais: se o espírito surgido o ano passado,
aqui e noutros rincões do mundo, não cresce e não consegue converter-se
numa força de peso no mundo social e político, as possibilidades de um
futuro digno não serão muito grandes.
* Noam Chomsky é professor de linguística do MIT (Massachusetts Institute of Technology).
Este texto foi publicado em www.sinpermiso.info/
Tradução de José Paulo Gascão
*GilsonSampaio
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