O México é aqui: o inferno em SP
VIa Jornal do Brasil
Mauro Santayana
As
elites paulistanas e sua representação política queriam que o Brasil
fizesse parte da Alca, o mercado comum hemisférico. Não entramos no
Acordo que, por nossa oposição, implodiu — mas os americanófilos de São
Paulo podem comemorar: já estamos no Nafta, ao lado do México. São Paulo
voltou a ser o inferno de há alguns anos, com a morte ceifando nas
ruas. Os fatos fazem lembrar os fortes versos de Edgar Allan Poe, em The City in the sea, que Bárbara Tuchman usou como epígrafe ao seu livro, The proud tower: “Assim, tudo parece pendente no ar, enquanto de uma orgulhosa torre na cidade, a morte olha com gigantesco desdém”.
“O mais dramático na matança em São Paulo é que são soldados pobres os que morrem”.
Ao
contrário do que nos quiseram fazer acreditar os perturbados teólogos
medievais, os infernos (sempre plurais) não são maldição divina, a nos
esperar na Eternidade, mas construção humana.Os infernos se fazem sobre o
chão da injustiça, e injustiça é sinônimo de desigualdade. O mais
dramático na matança em São Paulo é que, na guerra entre os criminosos e
os policiais, são soldados pobres os que morrem. Os soldados do crime e
os soldados da Polícia Militar. Não há heroísmo nem romantismo nessa
guerra cotidiana, mas sim a brutal expressão da violência.
Chegamos
a um extremo que só outro extremo poderá resolver. Ainda que haja
outras organizações de delinquentes (como a do goiano Carlos Cachoeira,
colocado em liberdade pela mesma Justiça que a outros condena sem
provas), a criminalidade mais brutal é a que se relaciona com o tráfico
de drogas. Não há outra saída para o problema senão a de permitir o uso
de drogas a quem quiser, e colocar o comércio de narcóticos no sistema
das atividades organizadas e fiscalizadas pelo Estado. Em uma visão
radical, mas necessária, podemos concordar com Stuart Mill, em seu
ensaio clássico On liberty: o indivíduo é livre para fazer tudo o
que quiser com ele próprio, até mesmo matar-se, desde que não
prejudique os outros. A sociedade não pode intervir nas decisões que só a
ele concernem. Sendo assim, as pessoas devem ter o direito de se
drogarem, desde que não induzam outras a fazê-lo, nem, sob o efeito do
narcótico, venham a cometer qualquer crime. Nesse caso, devem ser
punidos conforme as leis.
Se o uso de drogas
fosse legalizado, muitos usuários continuariam a morrer de overdose, é
certo; e muitos continuariam a agredir e a matar, como se agride e se
mata por outros motivos, mas não haveria organizações criminosas para
produzir e distribuir entorpecentes, e não haveria bancos para
administrar esse dinheiro encharcado de sangue, como fazem hoje grandes
instituições financeiras internacionais. Não havendo tão fortes
interesses, não teríamos as guerras entre bandos rivais de facínoras e
entre eles e a polícia (na qual há grupos criminosos, como as milícias,
também associadas ao narcotráfico, ao jogo, à prostituição).
As
leis penais brasileiras são, elas mesmas,construtoras do crime. Como
bem apontou, recentemente, o médico Dráusio Varela, um dos homens que
mais conhecem o desespero dos presídios, é uma estupidez colocar, nas
mesmas celas em que se encontram os grandes assassinos e assaltantes
ousados, os pequenos traficantes de drogas e trombadinhas. Além do
duplo castigo — o da prisão em si e o da violência dos mais fortes, que
horroriza os que conhecem a realidade infernal da cadeia — os pequenos
delinquentes alimentam, ali, o seu ódio natural contra a sociedade e, ao
sair do presídio, já saem vinculados a um bando qualquer.
Há,
no entanto, os poderosos que cruzam os braços e, sob a ilusão de que
são inatingíveis e invulneráveis, parecem regozijar-se no íntimo com o
extermínio mútuo dos pobres. Mas não há, nessa guerra, escudos contra o
chumbo.
O medo já começa a atingir a classe
média e os empresários de São Paulo. Muitos dos que têm recursos para
fazê-lo mudam-se da cidade, mandam os seus filhos para a Europa.
Constroem em condomínios fechados e guardados por exércitos de
“seguranças”, eufemismo inexato para designar os antigos capangas dos
meios rurais — se deslocam aos seus escritórios em helicópteros, de
forma a evitar o risco das ruas. São tão prisioneiros quanto os capitães
do PCC que se encontram entre as grades: não conhecem a liberdade das
ruas.
“O Estado tem o dever de segregar os criminosos mas não tem o direito de os meter em celas superlotadas”.
Outra
coisa: o Estado, em nome da sociedade, tem o dever de segregar os
criminosos punidos pela Justiça, mas não tem o direito sádico de os
meter em celas superlotadas, infectas, sórdidas, deixando-os ali a se
entrematarem sem qualquer proteção.
Esta guerra
não será amainada, enquanto não houver lucidez e solidariedade para com a
espécie humana. Se não houver coragem de se resolver o problema da
desigualdade — desigualdade diante da justiça,desigualdade diante da
vida — daqui a pouco os criminosos serão a maioria absoluta da
população. Se isso vier a ocorrer, como será?
Onde hão houver justiça, jamais haverá paz.
*GilsonSampaio
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