Estelionato editorial, caso para o PROCON: a biografia de José Dirceu escrita por um repórter da Veja é tão crível quanto a biografia de um judeu escrita por um nazista
BIOGRAFIA DE DIRCEU É CASO PARA O PROCON
Jornalista Breno Altman disseca livro de repórter da revista Veja;
aponta erros factuais, contradições e pressa; falta de checagem entre
afirmações e fontes leva texto a envolver ex-ministro José Dirceu em
situações das quais não há registro nenhum de sua participação; presença
de Thaís Oyama, chefe do autor Otavio Cabral na revista, tanto na
copidescagem do livro como no texto da capa de Veja que o anuncia mostra
que "promiscuidade é irrelevante" para os padrões éticos da publicação
semanal; "É um desrespeito ao leitor e ao código de defesa do
consumidor", diz resenhador; artigo exclusivo
10 DE JUNHO DE 2013 ÀS 11:40
do Brasil 247
Livro não passa de uma fraude, da primeira à última linha
por Breno Altman*
O título é um petardo que coraria escritores mais tarimbados e
talentosos. O jornalista Otávio Cabral, da equipe de "Veja", não deixou
por menos: "Dirceu, a biografia". Um recorde incrível foi batido pelo
autor, que deixaria humilhados biógrafos de maior fama: levou apenas
seis meses para pesquisar e escrever "a" obra definitiva sobre
personagem crucial da história política brasileira, cuja vida pública
percorre quase cinquenta anos.
Patrocinado pela revista que paga seu salário, publicação notória pela
isenção quando o assunto é José Dirceu, Cabral mereceu capa em edição
desta semana, na lambuja de artigo assinado por Thaís Oyama, sua chefe
imediata. A empreitada foi carimbada como "completa e surpreendente".
A resenhadora, aliás, recebe derretidos agradecimentos, no próprio
livro, por ter ajudado a "melhorar o texto" e tirar o escriba de
"algumas enrascadas". Mas essa aparente promiscuidade é um detalhe
irrelevante para os elevados padrões éticos que vicejam na editora
situada às margens do rio Pinheiros.
Tampouco tem importância a opinião do pretenso biógrafo, ainda que o
grau de intoxicação vá bem além do admissível. Fernando Morais, renomado
escritor de esquerda, fez da vida de Assis Chateaubriand, homem de
direita, obra prima da biografia. Otávio Cabral, repórter a serviço da
mídia fascistóide, porém, não escreveu sobre seu personagem, mas contra
ele. Isso era de se esperar. A marca registrada dos jornalistas de
"Veja", afinal, com raríssimas exceções, é ostentar os mais aclamados
prêmios no vale-tudo que tantaliza boa parte da imprensa tradicional.
Fundamental mesmo é que o livro não passa de uma fraude, da primeira à
última linha. Uma enganação. Um desrespeito ao leitor e ao código de
defesa do consumidor. O que a revista anuncia e o escritor promete não
passam de propaganda enganosa e abusiva. Ambos sonegam informações
relevantes, conduzem ao erro e prejudicam o conhecimento da verdade.
Para começo de conversa, Cabral simplesmente omite a lista dos
entrevistados para a biografia. Ninguém sabe quem testemunhou ou
declarou a maior parte dos fatos. O autor fala em 63 pessoas com quem
teria encontrado na fase de pesquisas. Pouquíssimas são citadas nas
notas de rodapé. Qualquer biografia que se preza registra as fontes de
investigação.
A jornalista Mônica Bergamo, em post no Facebook, já desmentiu relato no
qual se viu citada. Certamente não será a única. Fernando Morais, que
não foi ouvido pelo autor, também repele como falsos os momentos nos
quais é referido. Eu mesmo fui tratado, em determinada passagem, como
"porta-voz de Dirceu para momentos delicados, como o sequestro de Abílio
Diniz". Não apenas é uma deslavada mentira, como Cabral, por quem
aceitei ser entrevistado, jamais me perguntou a esse respeito.
A maior parte das passagens é mera republicação, às vezes literal, de
reportagens da própria "Veja" ou de outros veículos, difundidas nas
últimas décadas. O autor não se dá ao trabalho de cotejar informações e
testemunhos, verificar fatos, refazer caminhos. Seu desempenho não vai
além de um colegial que pesquisa algum tema no Google e copia
acriticamente o que vê pela frente. Se o livro fosse um TCC – o Trabalho
de Conclusão de Curso que as faculdades de jornalismo exigem de seus
alunos, Cabral teria levado bomba.
Não vacila em agir com este despudor sequer ao recorrer a arquivos da
ditadura militar. Documento assinado pelo delegado Alcides Cintra Bueno
Filho, torturador de carteira registrada no DOPS paulista, relata que
Dirceu teria sequestrado, em 1968, estudantes ligados ao Comando de Caça
aos Comunistas (CCC). No texto sofrível de Cabral, é o que basta para
ser apresentado como fato líquido e certo. E esse é apenas um exemplo.
Outro mais? Lá pelas tantas, o autor conta que Dirceu teria participado
de uma ação, em 1972, que resultaria no assassinato de um sargento da
Polícia Militar. A fonte? Relatórios do II Exército, que se referem a
uma testemunha identificando o líder petista em um cartaz de procurados.
A ditadura não abriu inquérito, a partir de prova tão frágil, mesmo
José Dirceu sendo um homem marcado para morrer, mas o escrevinhador
mandou bala. Não foi capaz, ao menos, de entrevistar um suposto
sobrevivente daquela operação, José Carlos Giannini, apesar de citá-lo.
Um biógrafo de verdade, como Mário Magalhães, ao escrever sobre Carlos
Marighella, comparou três fontes sobre cada episódio, no mínimo, antes
de cravá-lo como verdadeiro. Não é à toa que levou dez anos para
concluir sua obra sobre o comandante guerrilheiro. Esse método
definitivamente não é o do jornalista de "Veja". Além do recorta-e-cola
de matérias antigas e textos policiais, apostou muitas de suas fichas em
boatos sem origem indicada e em depoimentos de conhecidos desafetos do
biografado. A ideia do contraditório e da acareação lhe é totalmente
estranha.
Inúmeras das notas que chancelam determinadas informações apontam para
"um assessor", "um jornalista" ou "uma testemunha". Sem nome ou
sobrenome. Seria trágico se não fosse cômico. Um dos depoentes que dá a
cara é o ex-petista Paulo de Tarso Venceslau. Amigo de Dirceu no
movimento estudantil, depois dos anos 90 virou inimigo figadal. Mas seus
relatos são tratados pelo autor como verdades cristalinas, sem qualquer
contraponto. O resultado seria o mesmo se uma biografia de Fidel Castro
fosse escrita principalmente a partir de entrevistas com cubanos da
Florida ou se a história de Trotsky fosse contada pela direção soviética
dos anos 30 e 40.
O pastiche se supera quando especula que havia suspeita sobre Dirceu ter
sido o delator que teria levado às quedas e ao extermínio do Molipo,
organização armada à qual pertencia. O próprio Cabral, no entanto, cita
que os contemporâneos do biografado, alguns também sobreviventes do
massacre, negam essa versão e prestam-lhe seguidas homenagens e
manifestações de solidariedade. O autor se baseia em depoimento de um
ex-coronel das Forças Armadas, envolvido em atividades repressivas, que
não é corroborado por mais ninguém ou por qualquer documento. Pura
patifaria.
Não consegue, a propósito, sequer dar ares de seriedade a suas
invencionices. Profundamente ignorante sobre a história do país e da
esquerda, confunde incontáveis dados, datas e personagens, além de se
atrapalhar e cair em seguidas contradições. Paulo Vanucchi, citemos um
caso, é apresentado como militante da ALN em um canto e do MEP n'outro,
algo estapafúrdio, misturando organizações sem qualquer identidade entre
si.
Identifica o Departamento América, organismo do Partido Comunista
Cubano, como parte do serviço secreto. Destaca que Dirceu teria ficado
na Casa do Protocolo, supostamente localizada em área periférica de
Havana, quando há inúmeras casas de protocolo, como os cubanos chamam as
residências para convidados estrangeiros, todas com endereço em um dos
bairros mais nobres da cidade. E por aí vai. Cabral, diga-se, conseguiu
escrever páginas e páginas sobre a estadia de seu personagem em Cuba sem
ter pisado na ilha para ouvir testemunhas e pesquisar fontes primárias.
Um assombro de arrivismo.
Para apimentar o enredo, deu espaço a todo tipo de fofoca sobre a vida
pessoal do ex-ministro. Fez uma lambança sem tamanho, atribuindo
situações e sentimentos, ainda que jamais tenha ouvido qualquer de suas
ex-companheiras. Erra até datas de casamento e cria relações como um
romancista de folhetim barato. No bom estilo inventa-e-foge, planta
maliciosamente que o mulherengo infernal teria algum vínculo homossexual
com o intelectual cubano Alfredo Guevara, para logo dizer que não era
bem assim.
Sobre o chamado "mensalão", então, Cabral faz um prato caprichado. Uma
colada básica no relatório de Joaquim Barbosa, e está liquidada a
fatura. Nem mesmo aproveita a loquacidade do advogado José Luiz de
Oliveira e Lima, costumeiramente disponível a contar sobre bastidores de
seu cliente, para investigar contraprovas da defesa ou analisar mais a
fundo tanto os acontecimentos entre 2003-2005 quanto o julgamento de
2012. Preguiçosa e interesseiramente, adota sem pestanejar o ponto de
vista de quem lhe assina o cheque de cada mês.
Os únicos leitores com os quais Cabral parece ter compromisso, a bem da
verdade, são seus chefes na Veja. A estes entregou a mercadoria
prometida: mais um libelo contra José Dirceu. Feito nas coxas, seguindo o
manual para linchamento de reputações que faz sucesso entre seus pares,
mandando às favas qualquer critério jornalístico ou rigor de pesquisa.
Coisa de charlatão.
Ao distinto público, no entanto, está sendo oferecido gato por lebre. O
livrinho é um estelionato editorial que lança mais luz sobre o autor e
seus patrocinadores que sobre o biografado. Um bom caso para o Procon.
*Breno Altman é diretor editorial do site Opera Mundi e da revista Samuel
Fonte: http://www.brasil247.com/+51q2e
Fonte: http://www.brasil247.com/+51q2e
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