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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

sábado, julho 05, 2014

A alteridade cínica da grande mídia (2)

Em pelo menos três ocasiões distintas, nos últimos cinco meses, registrei, neste Observatório da Imprensa, a obstinação da grande mídia brasileira em torno de uma pauta negativa.

Em janeiro, referindo-me à tradicionalíssima oração católica “Salve Rainha” escrevi:

Um visitante estrangeiro que desembarque no Brasil e que tome como referência as notícias diariamente veiculadas na grande mídia brasileira se convencerá de que o “vale de lágrimas” da interpretação cristã do Salmo 84 é aqui, hoje e agora. No enquadramento padrão do jornalismo praticado entre nós, até mesmo as notícias eventualmente “boas” são acompanhadas de comentários irônicos e jocosos insinuando que alguma coisa deu ou dará errado, mantendo-se o “clima geral” de que estamos vivendo numa permanente e irrecorrível sequência de sofrimento e purgação de pecados. (...). Por óbvio, o “vale de lágrimas” não é a única característica do jornalismo brasileiro que omite e/ou enfatiza seletivamente aquilo que atende mais ou menos aos seus interesses, implícitos e/ou explícitos. (...) Não haveria nada de positivo eventualmente acontecendo e merecedor de ser noticiado neste pedaço do planeta “descoberto” por Cabral? No jornalismo do “vale de lágrimas” que vem sendo praticado pela grande mídia, salvar o Brasil, só com ajuda divina. Vamos todos rezar o “Salve Rainha” [ver “O ‘vale de lágrimas’ é aqui“].

Em fevereiro, discutindo a questão da violência urbana, registrei uma orientação da TV Globo que, embora posteriormente desmentida, confirmou-se na cobertura jornalística oferecida. Afirmei naquela ocasião:

A Rede Globo de Televisão recomendou a seus jornalistas, inclusive os que trabalham em suas 122 (cento e vinte e duas) emissoras afiliadas, “que a Copa e a seleção brasileira são uma paixão nacional, mas que irregularidades deverão ser denunciadas e ‘pautas positivas’ deverão ser evitadas, a não ser que ‘surjam naturalmente’. Reportagens que mostram como a Copa está beneficiando grupos de pessoas, como os comerciantes vizinhos a estádios, já não estão sendo produzidas para o Jornal Nacional” (ver aqui, e aqui a resposta da Globo). (...) O que me traz de volta ao tema é, especificamente, a alteridade cínica do jornalismo do vale de lágrimas na cobertura da violência urbana. Esse tipo de jornalismo “faz de conta” de que a mídia não tem qualquer responsabilidade em relação ao que ocorre na sociedade brasileira. Ela seria apenas uma observadora privilegiada cumprindo o seu papel de tornar pública a violência e cobrar mais policiamento dos governos local e federal – como se a solução da violência fosse um problema apenas de mais ou menos policiamento [ver “A alteridade cínica da grande mídia“].

E, finalmente, em maio, analisei, como exemplo concreto, matéria de capa do portal UOL, assinada por Aiuri Rebello, com o título: “Brasília inaugura seu único legado de mobilidade para a Copa no escuro”. Comentei:

Trata-se aqui da incansável e sistemática pauta negativa que tem orientado a quase totalidade da cobertura jornalística da grande mídia nos últimos meses (...). A matéria do UOL, contudo, destaca os seguintes pontos: 1. “a única [obra] de mobilidade urbana prevista em Brasília para sair a tempo da Copa; 2. “não há iluminação instalada em um raio de pelo menos 50 metros no entorno da rotatória, o que dificulta a vida de motoristas e pedestres por ali”; 3. “não há uma calçada ou qualquer ponto de travessia próximo para pedestres, como faixa ou passarela”; 4. “não há nenhuma sinalização viária ou placa de qualquer espécie, tanto na rotatória quanto no túnel e suas imediações para indicar os caminhos certos aos motoristas”; e 5. “em agosto do ano passado, o UOL Esporte mostrou que centenas de árvores e plantas nativas do Cerrado e tombadas pelo governo foram desnatadas (sic) durante a obra.” [Observação: no dicionário Aurélio, “desnatar” significa “tirar a nata a (o leite)”.] Ser “a única” obra de mobilidade urbana altera o valor intrínseco dela? Na verdade, a obra inaugurada se integra a outras do Expresso DF Sul em fase de testes, no mesmo espaço. Problemas de iluminação e de sinalização, na obra e em seu entorno, sim, existem e, pelo que se vê, tenta-se resolvê-los após a inauguração. Por outro lado, como sou usuário frequente do acesso do Plano Piloto ao aeroporto, posso garantir que (1) não há fluxo de pedestres na região do túnel inaugurado e (2) não havia como fazer obras no local sem a retirada de “árvores e plantas nativas do Cerrado”. O GDF garante que as 67 árvores [e não “centenas”] da espécie sibipiruna deslocadas para as obras do Expresso DF Sul foram replantadas pela Novacap com sucesso e que foram ainda plantadas 400 mudas de ipês (cores branca, roxa e amarela), 250 palmeiras e 47 flamboyants. Tenho chamado essa prática de pauta negativa de “jornalismo do vale de lágrimas”. Afinal, há algum limite para a pauta negativa? [ver “Há limite para a pauta negativa?“]

Do #nãovaiterCopa à Copa das Copas

Como inúmeros outros observadores, ao longo dos últimos meses, registrei a pauta negativa unânime da grande mídia, não só em relação aos preparativos para a Copa, mas também ao cotidiano da vida dos brasileiros, nos seus mais distintos aspectos.

Luciano Martins Costa constatou com propriedade, neste Observatório, poucos dias antes do início da Copa do Mundo que “se o leitor ou leitora afeto à visão crítica dos acontecimentos fizer uma visita ao noticiário dos últimos doze meses, vai observar que o estado de espírito negativo que contamina o Brasil não decorre de um efeito colateral do noticiário: é o propósito central da atividade da imprensa hegemônica. (...) A leitura dos jornais nesse período indica claramente o desenvolvimento de uma campanha com objetivo de destruir a autoestima dos brasileiros” [ver “Imprensa e jornalismo, nada a ver“].

Pois bem.

Chegou a Copa do Mundo. Eis que o #imaginanaCopa e o #nãovaitercopa foram superados por um evento alegre e festivo, celebrado nas ruas do país e nas “arenas” das 12 cidades-sede por milhões de brasileiros e estrangeiros de todas as regiões do planeta.

Diante desse fato incontornável, a grande mídia do “vale de lágrimas” passou a praticar um malabarismo digno das Olimpíadas que acontecerão no Rio, em 2016.

A alteridade cínica se repete

O campeão da pauta negativa, o Jornal Nacional da TV Globo, na edição de quinta-feira (26/6), por intermédio de seu editor-chefe e âncora, atribuiu o “ar de preocupação generalizada” em relação à realização da Copa do Mundo no Brasil “especialmente” às críticas “ácidas” da imprensa estrangeira. Disse ele:

Durante meses, os atrasos e os problemas de organização da Copa do Mundo foram assunto de muitas reportagens no Brasil e no exterior. Existia no ar uma preocupação generalizada com as consequências dos atrasos, das obras não concluídas. E os jornais estrangeiros eram especialmente ácidos nas críticas. Mas o fato é que, aos poucos, desde o início desse Mundial, isso tem mudado.

E a correspondente da TV Globo em New York, Elaine Blast, completa:

Muitos problemas que antes eram previstos para a Copa do Mundo no Brasil não se confirmaram. Aos poucos, o tom crítico da imprensa internacional foi mudando, com reportagens que também retratam o clima festivo desse Mundial [cf. texto e vídeo disponíveis aqui].

Será que a cobertura negativa da grande mídia brasileira – do JN, em particular – não serviu de referência para as críticas “ácidas” que “os jornais estrangeiros” fizeram ao país?

Será que os 22 mil jornalistas estrangeiros, de mais de 60 países, credenciados para cobrir in loco a Copa do Mundo (18.800 diretamente pela FIFA e 3.300 pelo governo brasileiro, o maior contingente de todas as Copas) não teriam constatado, eles próprios, que a realidade do país não era exatamente aquela que a mídia brasileira mostrava?

Será que a TV Globo insiste em trabalhar com a suposição de que a sua audiência (ou a maioria dela) é tola, desmemoriada [ver Laurindo Leal Filho, “De Bonner para Homer“] e não se recordará da obstinação pela pauta negativa que marcou a cobertura da emissora e de suas afiliadas até o início da Copa do Mundo?

Vale lembrar o refrão do sucesso de Paul Simon na década de 1970: “Who do you think you’re fooling?” (“Love me like a rock”, 1973).

Não é sem razão que essa alteridade cínica, repetida e conveniente, tem provocado, já há algum tempo, a queda contínua de credibilidade da grande mídia brasileira.

Venício A. de Lima, jornalista e sociólogo, professor titular de Ciência Política e Comunicação da UnB (aposentado), pesquisador do Centro de Estudos Republicanos Brasileiros (Cerbras) da UFMG e organizador de Para Garantir o Direito à Comunicação – A lei argentina, o relatório Leveson e o HGL da União Europeia, Perseu Abramo/Maurício Grabois, 2014; entre outros livros 
No OI
*comtextolivre

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