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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

domingo, fevereiro 13, 2011

Liberdade de Expressão vs. Liberdade de Imprensa

Venício: a obra magistral de Paulo Freire sobre Comunicação

Freire é mestre na Índia. No Brasil enfrenta o preconceito

Saiu na Carta Maior:

Comunicação e cultura em Paulo Freire: 30 anos depois


Hoje, a contribuição de Paulo Freire para o campo da comunicação é fonte de inspiração e referência. A situação, certamente, não era a mesma no final da década de 70. Embora reconhecido internacionalmente e estudado em várias disciplinas, seu pensamento era quase que totalmente ignorado nos estudos de comunicação, inclusive no Brasil.


Venício Lima


Visitando a trabalho o sul da Índia, estado de Tamilnadu, no início de 2010, o professor de física da Universidade de Brasília, Amílcar Rabelo de Queiroz, deparou-se com uma situação reveladora. Em viagem para a região de Thanjavur conheceu um vilarejo pobre – Pattukkotta – que vive basicamente da pequena agricultura. Lá visitou uma escola de educação fundamental. Para facilitar sua apresentação e criar um clima amistoso, os colegas do Institute of Mathematical Sciences (IMSC), que com ele viajavam, informam aos professores da escola que Amílcar era brasileiro, da terra de Pelé. “Brasil? Pelé?”. Repetem várias vezes. De repente, um deles sorri e exclama: “ah, ah, Brasil, claro, terra de Freire, Paulo Freire!” E alcança na estante vários livros de um dos nossos maiores educadores, traduzido, estudado e reconhecido em todo o mundo.


Paulo Freire faleceu há quase 14 anos, em maio de 1997. Se estivesse vivo, completaria noventa anos em setembro. Sua obra, seu pensamento e sua ação deixaram marcas profundas em vários campos do conhecimento. Seu único ensaio especificamente sobre comunicação – Extensão ou Comunicação? – foi escrito no exílio chileno, em 1968, e publicado pela Editora Paz e Terra, no Brasil, em 1971.


Tenho afirmado recorrentemente que as reflexões de Freire sobre comunicação nunca estiveram tão atuais. [cf. nesta Carta Maior “Paulo Freire, direito à comunicação e PNDH3”].


Direito à comunicação

A necessidade de construção e positivação de um direito à comunicação foi identificada há mais de 40 anos pelo francês Jean D’Arcy, quando diretor de serviços audiovisuais e de rádio do Departamento de Informações Públicas das Nações Unidas, em 1969. Naquela época ele afirmava:


Virá o tempo em que a Declaração Universal dos Direitos Humanos terá de abarcar um direito mais amplo que o direito humano à informação, estabelecido pela primeira vez 21 anos atrás no Artigo 19. Trata-se do direito do homem de se comunicar.


A proposta de D’Arcy, na verdade, assumia e consagrava uma perspectiva “dialógica” da comunicação que já havia sido elaborada, do ponto de vista conceitual, por Paulo Freire no ensaio “Extensão ou comunicação”?


Freire recorre à raiz semântica da palavra comunicação e nela inclui a dimensão política da igualdade, a ausência de dominação. Para ele, comunicação implica um diálogo entre sujeitos mediados pelo objeto de conhecimento que por sua vez decorre da experiência e do trabalho cotidiano. Ao restringir a comunicação a uma relação entre sujeitos, necessariamente iguais, toda “relação de poder” fica excluída. O próprio conhecimento gerado pelo diálogo comunicativo só será verdadeiro e autêntico quando comprometido com a justiça e a transformação social. A comunicação passa a ser, portanto, por definição, dialógica, vale dizer, de “mão dupla”, contemplando, ao mesmo tempo, o direito de ser informado e o direito de acesso aos meios necessários à plena liberdade de expressão.


Como se vê, Freire teoriza a comunicação interativa antes da revolução digital, vale dizer, antes da internet e de suas redes sociais. No nosso tempo, quando as novas tecnologias [TICs] rompem com a unidirecionalidade da comunicação “de massa” tradicional, o conceito de comunicação relacional e transformadora oferece uma referencia normativa revitalizada e desafiadora.


História das idéias

Ao reafirmar a atualidade do pensamento de Paulo Freire, especificamente para o campo da comunicação, tomo a liberdade de registrar os trinta anos de “Comunicação e Cultura: as idéias de Paulo Freire”, publicado pela Paz e Terra, em março de 1981 (2ª. edição 1984). O livro é uma adaptação de tese de doutorado defendida em agosto de 1979.


Na verdade, o argumento central sobre a importância de Freire para o estudo da comunicação já havia aparecido em artigo anterior que publiquei, com Clifford Christians, na revista inglesa Communication (vol. 4, n. 1, 1979) sob o título “Paulo Freire: the political dimension of dialogic communication”, traduzido e publicado em português pela revista Síntese (vol. VI, n. 16, maio/agosto de 1979).


A história das idéias nos diferentes campos do conhecimento – inclusive na Comunicação – muitas vezes contém omissões, deliberadas ou não, ao deixar de registrar contribuições feitas por autores que, por diferentes razões, não se situam no seu “mainstream” ou não se alinham aos grupos dominantes na academia. Daí, às vezes, a necessidade de auto-registros isolados como esse.


Hoje, a contribuição de Paulo Freire para o campo da comunicação é fonte de inspiração e referência. A situação, certamente, não era a mesma no final da década de 70 do século passado. Embora reconhecido internacionalmente e estudado em várias disciplinas – filosofia, sociologia, serviço social, religião, história – seu pensamento era quase que totalmente ignorado nos estudos de comunicação, inclusive na sua terra, o Brasil.


A incrível história do prof. Amílcar na Índia, de que só agora tomei conhecimento, serviu de mote para que fizesse, então, esse duplo registro: a permanente atualidade do pensamento do educador brasileiro e os trinta anos do Comunicação e Cultura: as idéias de Paulo Freire.



Venício A. de Lima é professor titular de Ciência Política e Comunicação da UnB (aposentado) e autor, dentre outros, de Liberdade de Expressão vs. Liberdade de Imprensa – Direito à Comunicação e Democracia, Publisher, 2010.

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