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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

quarta-feira, fevereiro 23, 2011

Muitos Cairos


Jogando pelo poder em Wisconsin
Paul Krugman

Na semana passada, diante de manifestações que se estenderam por todo o final de semana e atraíram multidões no sábado para protestar contra Scott Walker, o novo governador de Wisconsin, que está tentando destruir os sindicatos do Estado, o deputado Paul Ryan fez inadvertidamente uma comparação que se provou correta: "É como se o Cairo tivesse se mudado para Madison".

Não foi a coisa mais inteligente que Ryan poderia ter dito, já que o deputado provavelmente não desejava comparar Walker, republicano como ele, a Hosni Mubarak. Ou talvez quisesse -afinal, diversos conservadores conhecidos, entre os quais Glenn Beck, Rush Limbaugh e Rick Santorum, denunciaram os levantes no Cairo e insistiram em que o presidente Obama deveria ter ajudado o regime de Mubarak a reprimi-los.

De qualquer forma, Ryan estava mais certo do que imagina. Pois o que está acontecendo no Wisconsin não se relaciona ao orçamento do Estado, a despeito de Walker fingir que suas ações representam uma tentativa de se comportar de modo responsável no plano fiscal. O que está em jogo, na verdade, é o poder. O que Walker e seus simpatizantes estão tentando fazer é tornar o Wisconsin -e mais tarde o país inteiro- menos uma democracia funcional e mais uma oligarquia ao modo do Terceiro Mundo. E é por isso que todo mundo que acredita que precisamos de algum contrapeso ao poderio político do dinheiro deveria apoiar os manifestantes.

O retrospecto: é fato que o Wisconsin enfrenta problemas orçamentários, ainda que menos severos que os de diversos outros Estados. A arrecadação caiu devido à situação econômica desfavorável, e os fundos de estímulo, que ajudaram a reduzir a discrepância em 2009 e 2010, desapareceram.

Nessa situação, faz sentido propor sacrifícios compartilhados, o que incluiria concessões monetárias dos funcionários públicos estaduais. E os líderes dos sindicatos desses funcionários já sinalizaram que estão efetivamente dispostos a fazer esse tipo de concessão.

Mas Walker não está interessado em um acordo. Em parte isso acontece porque ele não deseja que os sacrifícios sejam compartilhados: ainda que alegue que Wisconsin enfrenta uma terrível crise fiscal, vem pressionando por cortes de impostos que tornam o deficit ainda pior. Mas o mais importante é que ele deixou claro que, em lugar de negociar com os funcionários, quer pôr fim ao poder de negociação deles.

O projeto de lei que inspirou as manifestações revogaria o direito de muitos dos funcionários estaduais a negociar salários coletivamente, o que na prática significaria destruir os sindicatos do funcionalismo estadual. Um dado revelador é que certos grupos de funcionários -a saber, aqueles que tendem a se alinhar ao Partido Republicano- estão isentos dessa cláusula, como se Walker desejasse ostentar claramente a natureza política de suas ações.

Por que destruir os sindicatos? Como eu já disse, isso nada tem a ver com ajudar o Wisconsin a superar a crise fiscal atual. E tampouco é provável que a medida ajude as perspectivas orçamentárias do Estado em longo prazo: ao contrário do que você pode ter ouvido, os funcionários públicos do Wisconsin e de outros lugares ganham um tanto menos que trabalhadores do setor privado com qualificações semelhantes, de modo que não há muito espaço para reduzir-lhes ainda mais os salários.

Portanto, não é o orçamento que importa, mas o poder.

Em princípio, todo cidadão dos Estados Unidos têm o mesmo poder no nosso processo político. Na prática, claro, alguns são mais iguais do que os outros. Bilionários podem empregar exércitos de lobistas; podem financiar organizações de pesquisa que apresentam as questões da maneira que lhes for mais conveniente; podem canalizar dinheiro para políticos que simpatizem com seus interesses (como os irmãos Koch fizeram no caso de Walker). No papel, vivemos em um país no qual cada cidadão tem um voto; na prática, temos algo de oligarquia, e vivemos sob o domínio de um pequeno número de pessoas endinheiradas.

Considerada essa realidade, é importante que existam instituições capazes de funcionar como contrapeso à influência do dinheiro. E os sindicatos estão entre as mais importantes dessas instituições.

Não é preciso amar os sindicatos, ou acreditar que suas posições políticas estejam sempre certas, para reconhecer que estão entre os poucos agentes de nosso sistema a representar os interesses dos norte-americanos de classe trabalhadora e média, em oposição aos dos ricos. Se os Estados Unidos se tornaram mais oligárquicos e menos democráticos ao longo dos últimos 30 anos -e isso é fato-, o processo se deve em larga medida ao declínio dos sindicatos do setor privado.

E agora Walker e seus partidários querem fazer o mesmo com relação aos sindicatos dos funcionários públicos.

Há uma amarga ironia nisso. A crise fiscal em Wisconsin, como em outros Estados, foi causada em larga medida pelo crescente poder da oligarquia norte-americana. Afinal, foram os cidadãos de altíssimo patrimônio, e não o público em geral, que pressionaram pela desregulamentação financeira e com isso criaram o cenário para a crise econômica de 2008-2009, cujas consequências são o principal motivo para a crise orçamentária atual. E agora a direita política está tentando explorar a crise para remover um dos poucos obstáculos restantes à influência da oligarquia.

Será que o ataque aos sindicatos terá sucesso? Não sei. Mas quem quer que deseje reter o governo do povo pelo povo deveria torcer para que isso não aconteça.

TRADUÇÃO DE PAULO MIGLIACCI

Paul Krugman, 57 anos, é prêmio Nobel de Economia (2008), colunista do "The New York Times" e professor na Universidade Princeton (EUA). Um dos mais renomados economistas da atualidade, é autor ou editor de 20 livros e tem mais de 200 artigos publicados em jornais especializados.
*esquerdopata

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